sexta-feira, 11 de agosto de 2017

O CONTO DA AIA DO GOVERNO TEMER




Programas sociais como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida possuem o pagamento direcionado preferencialmente para as mulheres como responsáveis pelo núcleo familiar e nem preciso explicar o motivo, né?!

Pois bem, os cortes destes benefícios assim como a alta dos alimentos e outros bens de consumo para subsistência atingem exatamente essas mesmas mulheres que são responsáveis por outras vidas.

A história do homem como provedor sempre foi só uma alegoria, pois ainda hoje eles só proveem quando acham conveniente, com o que acham conveniente, se acham conveniente ou sob obrigação judicial (e olhe lá).

É muito evidente que as mulheres sempre foram as responsáveis - e assim continuam - por manter crianças, jovens e idosos do núcleo familiar. Desde os cuidados afetivos, aos cuidados com a alimentação, sempre sobrou para a mulher a responsabilidade. (E não me venham com "mas nem todo ome", pois isso não gera estatísticas e nem transformação social.)

Quando o Governo Temer corta esses benefícios, acontece o primeiro passo para prejudicar famílias e uma sociedade inteira: a tirada de autonomia financeira de mulheres. Mais especificamente, de mulheres pobres.

Perdendo essa autonomia, as mulheres em condições de vulnerabilidade socioeconômica estão muito mais sujeitas a violências de todos os tipos. A começar (sempre) pela violência doméstica. Sujeitando-se a homens para ter que prover seus filhos e seus idosos de bens básicos, ficam expostas a violências que vão desde a níveis psicológicos a agressões físicas e exploração e abusos sexuais, não só de seus corpos e de sua existência, mas também de seus filhos.

Óbvio que prejudicar essas mulheres significa também prejuízo para os homens. A misoginia é violência contra toda a humanidade. 

Quem teve estômago para assistir a série O Conto da Aia (The Handmaid's Tale), baseada em obra homônima de Margareth Atwood, viu que o primeiro passo que a República de Gileade deu para retomar o domínio social e político sobre os corpos das mulheres foi tirando sua autonomia e independência financeira ao proibir que se empregassem mulheres, ao proibir mulheres como titulares de contas bancárias e transferindo o dinheiro das contas destas para o membro XY mais próximo da mulher, ao proibir que se prestassem serviços para mulheres que não estivessem acompanhadas por um homem, e ao devolver as mulheres para a tutela dos machos ou do próprio governo - quando fosse o caso.

Manter as mulheres sem recursos pra prover a si mesma e aos seus, quando estas não possuem acesso a educação de qualidade e meios de sobrevivência pelos quais ela possa garantir bens básicos, é empurrá-las para arranjos matrimoniais, sujeição a exploração sexual, prostituição, exploração infantil, pedofilia, trabalho em situação análoga a escravidão, exploração do trabalho doméstico, sujeição especialmente de gestantes a trabalhos que coloquem sua saúde e a saúde do bebê em risco... 

As mulheres morrem de várias formas.

Morremos quando não conseguimos garantir o bem-estar e a sobrevivência daqueles que dependem de nós ou com os quais nos comprometemos moralmente. Morremos com o choro faminto de nossos filhos, ou com a dificuldade em ofertar a estes igualdade de oportunidades para estudarem e se desenvolverem. Morremos a cada tapa ou mesmo pegada no braço que vem nos intimidar. Morremos com cada olhar de assedio. Morremos sempre que ouvimos que uma mulher - mesmo que nos seja estranha - foi estuprada. Morremos sempre que uma criança é estuprada ou violentada. Morremos sempre que vemos a fome, o preconceito e a dor de outros vulneráveis. Mesmo os que nos são estranhos.

Pois quando se tem consciência de que essas dores são comuns, nos afetamos e compartilhamos delas. Quando não se tem essa consciência, é fácil viver - na ignorância e inclusive fomentando estas violências em alguns momentos ou o tempo todo.

O que os cortes em benefícios sociais prioritariamente direcionados a responsabilidade das mulheres como chefes de família significa nada menos que mais uma página escrita e avançada no Conto da Aia do Governo Temer.

Uma história que começou com a construção de um golpe político que tirou uma mulher do poder e outras tantas, e em seus lugares, colocaram homens que extinguiram Ministérios, políticas públicas e estão mexendo em leis que minimamente buscavam garantir a segurança para as mulheres.

Leis e políticas que eram e ainda são migalhas, mas ainda assim importantes para cada mulher - esteja ela se beneficiando delas ou não. Pois como Angela Davis diz, "quando uma mulher negra se ergue, ela ergue o mundo inteiro com ela". E sabemos que as negras são maioria absoluta das mulheres prejudicadas pelo Conto da Aia de Michel Temer...

Mas sabemos que elas são apenas as primeiras a serem derrubadas por mais esse golpe? Isso tudo é parte de um processo de extermínio e controle social, racial, político e misógino.

A gente, que tá nas universidades, que tá empregada em empresas ou no sistema público, ou mesmo as que não trabalham mas possuem uma vida onde não precisam se preocupar com as contas ou com o que vai comer ou se vai ter o que comer, estamos agora confortáveis - de certa forma - em nossos lugares. Nos sentindo livres, mesmo arrebatadas com a indignação com o quadro político, social e econômico. Mas se sairmos um pouco de nossa torre de marfim e colocar o pé no chão, olhando atentamente as outras mulheres a nossa volta - aquelas que levantam de madrugada pra encarar transporte público precário e lotado em engarrafamentos quilométricos e assédio lá dentro rumo a um trabalho precarizado onde encontram mais assédio, riscos e remuneração baixa - é possível enxergar esse combo de violências pelas quais passam mulheres que estão distantes de nossa condição.

Existem condições que nos unem, mas que teimamos em ignorar ou só evocar por conveniência, em benefício próprio. Não enxergamos que cuidar das outras, especialmente das que estão mais expostas é cuidar de nós mesmas. Fortalecê-las é fortalecer a nós mesmas. Garantir a vida delas é garantir a nossa.

Garantindo a vida das mulheres mais vulneráveis, garantimos a vida de toda a humanidade.

Pensem nisso antes de votar - caso ainda acreditem nisso.
Pensem nisso antes de dormir e ao acordar.
Pensem nisso antes de cada gole de cerveja ou de cada mastigar da refeição consumimos.

Pensem nas mulheres.
Pensem nas mulheres marginalizadas. 

Pensemos no que vamos fazer ou se vamos seguir sentados assistindo.
Ou se vamos pras ruas apenas gritar e passear com cartazes.

Pra quem já está condenada morte pela fome, morrer pela bala numa luta é um favor.

Enquanto a gente segue quieto, esperando eleições pra "mudar", eles, aqueles homens, velhos, brancos e ricos que estão no poder, preparam tudo para que as eleições sigam sendo apenas um processo de ilusão de que temos um Estado democrático onde temos liberdade para escolher "representantes".

Não temos nada.
Eles já mostraram que, além de tudo isso ser ilusão, eles podem mudar as coisas em favor deles e o farão sempre que acharem necessário.

"Um rato num labirinto é livre para ir a qualquer lugar, contanto que ele permaneça dentro do labirinto."
(ATWOOD, Margareth.)

Reportagem sobre o corte de mais de meio milhão de bolsas:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/11/bolsa-familia-reduz-543-mil-beneficios-em-1-mes-programa-tem-maior-corte-da-historia.htm

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Uma fatalidade, um jazz: Matei Angela Ro Ro

"Mais, foi a primeira palavra que eu me repeti intensamente em minha infância: 'maise, mamãe, maise...'
Fosse guaraná, fosse coca-cola; fosse coca, fosse cola; fosse amor ou desamor ou qualquer outra espécie de dor.
Eu quero é mais ser imortal!! Quero ser o meu futuro ancestral. 
Quero mais tabacaria, mais pessoa, mais maria, mais vinho, mais poesia..."
(Angela Ro Ro)


“Beba comigo a gota de sangue final.”

Ouço neste momento o primeiro trabalho de Angela Ro Ro. Ao mesmo tempo, vou violentando meu ídolo. Desconstruindo quase que num processo de esquartejamento. Doloroso por ser outra mulher. Doloroso por ser uma mulher que passou por uma série de violências que artistas e homossexuais passavam diariamente durante a ditadura.
Ela também cometeu suas violências, seus escândalos, sabemos. Especialmente contra si mesma.
Quem nunca assistiu as imagens da decadência artística de Ro Ro nos anos 80, procure assistir. Essa decadência foi exatamente a minha lembrança mais remota do que é ser tocada pela expressão de alguém. O desespero, o deboche, a ousadia, as muitas coisas ditas de várias formas e com uma voz infernal, capaz de entrar suavemente na jugular e nos fazer morrer aos poucos e quase sem sentir (Me Acalmo Danando), mas que também poderia entrar com a violência de ser atropelada por um trem ou ser torturada por milhões de carrascos por toda a eternidade (Balada da Arrasada).
A voz, a composição, o sentimento de Angela Ro Ro são referências pra mim. Por mais que pra mim, Bethânia seja o divino, Angela Ro Ro é o capeta. E o capeta, o profano é o mais humano. Era Angela que eu queria ser na desgraça da vida.
Hoje, 02 de outubro de 2015, eu mato meu ídolo. De hoje em diante, ela é só uma voz e lembrança. As coisas ditas e escritas por ela a respeito de sua última apresentação em Fortaleza/CE são coisas que eu não tolero. Não posso e por isso transformo a artista brasileira mais humana (nas emoções) em apenas voz e lembrança.

“Pára de matar, pára de morrer!”

Essa postura dela em Fortaleza só me mostra que ela é realmente muito humana... Inclusive em seu pior: racista, xenofóbica, transfóbica, homofóbica, burguesa... Um combo pro tombo, como comentei com um amigo com quem compartilhei o amor e a morte de Ro Ro. “Uma morte horrível”, ele disse. De fato.
Mesmo reconhecendo que, o público do show não é o público para quem ela está habituada a cantar, não é aceitável as ofensas. Apoio os escândalos dela, os pitis de Bethânia. Odeio quando o público não respeita o artista no palco. E quando falo de respeitar, é respeitar o espaço e a voz. E pra isso é necessário silenciar para ouvir – até pra intervir, se for o caso é preciso antes ouvir. É preciso calar o corpo pra receber a voz de Ro Ro dos poros até os ossos.
É muito óbvio que o público do show não estava disposto a experienciar Ro Ro. A forma de experienciar do público LGBTI, quando reunido num evento para estes, é diferente de quando está em outros espaços. Mas o artista precisa saber dizer “não” ou saber transitar entre um público que não vai se comportar como o artista gostaria.
Ofensas ultrapassam o público presente.

Tola foi você, Angela.
Ofender pessoas ou situações hoje é diferente da década de 80. O público também é diferente. Muita coisa. A própria artista é diferente. Ao público habituado com a Angela Ro Ro, ou que conhece sua história, seus escândalos fazem parte de sua arte. Como Madonna e putaria, Angela e escândalo era regra. Ainda é. Mas é preciso olhar pra si e olhar para aquele que se quer atingir e pensar na forma de atingir.
Dessa vez realmente, achamos que a senhora falou demais.
Eu achei.
Falou tanto que virou só voz e lembrança.
Sim, eu iria num show dela novamente. Sou desse público que deixa sua voz adentrar os ossos. Eu jamais estaria num show de Angela onde o público é da Gaga ou da Madonna (mais estaria no show da Madonna com público da Angela). Mas há algo que eu não consigo mais: olhar pra Ro Ro sem lembrar das coisas que ela escreveu, tal “mulher original de fábrica”.
Enquanto mulher, somos companheiras. Enquanto lésbicas, somos companheiras. Enquanto mulher lésbica vítima da polícia durante a ditadura militar, somo companheiras. Mas não pertencemos a mesma classe e nem sou da mesma fábrica que te produziu “mulher original”. E mesmo cariocas, não a enxergo como companheira nisso. Minha percepção de minha cidade natal é diferente, por muitos aspectos: não sou zona sul, não sou da gema, não sou burguesa, e não sou branca.
Suas canções são capazes de ilustrar cada momento de esquartejamento da figura que um dia admirei demais. Hoje, o dia em que matei Angela Ro Ro, ela se torna apenas uma voz que admiro.

 “Tua voz...

Tão difícil de calar, não me diz mais nada.” 

De cafés a cigarros, de paisagens aos cheiros e paladares: Lembranças e Provocações


Cada amor tem suas peculiaridades.
Quando juntos, elas fazem parte da rotina. Quando separados, elas podem fazer parte das lembranças. E se as lembranças serão boas ou não, algumas vezes podemos optar – algumas vezes, pois em outras, algumas marcas serão dolorosas sempre... mas vamos tentar focar nas boas ou nas que transcendem valores.
Tem muitas coisas que faço no meu dia-a-dia que já foram rotina de uma história de amor. Por vezes, algumas dessas ações estão tão banalizadas na minha rotina que nem lembro destes momentos amorosos. Em compensação, tem outras coisas que trazem inevitavelmente a lembrança de alguém.
Por exemplo, tomar café corriqueiramente nem sempre traz lembrança. Mas sentar pra observar o mundo e degustar uma café sempre me traz 3 amores e um amigo. Por vezes, apenas o cheiro do café é suficiente pra evocar a presença destes amores.
Um desses amores anula os demais se o café for acompanhado por chocolate ou amigos que ficaram.
Tem um amor que vem com uma xícara de chocolate italiano bem quente. Um outro vem com uma xícara de leite com açúcar queimado. Outro vem com o cheiro do manjericão. Outro com o cheiro de livros na estante. Tem um que vem com gosto do brie com damasco. Aspargos ao molho de limão. Salmão defumado. Cheiro de flores. Um prato. Uma toalha. Uma peça de roupa que ficou ou que veio. Um recadinho deixado até hoje entre objetos aleatórios.
Tem amor com cheiro de Seda Melanina UV. Outro cheira a OX. Mel. Canela. Bolo de chocolate. Floresta da Tijuca.
Fazer iogurte traz lembranças. Comê-lo com doce de banana ou com açúcar mascavo também.
Pão com ovo.
Banho de chuva. Pôr do sol. Stella Artois. Mojito. Merlot.
Várias canções tocadas e outras choradas ao violão.
Um travesseiro. Um cobertor.
O cheiro de alguns produtos de higiene ou limpeza.
Algumas cidades. Algumas ruas. Algumas praças. Algumas festas. Alguns amigos. Prostitutas. Gatos. Cachorros de rua. Alguns carros.
Um corte de cabelo – seja meu, seja dos outros.
Alguns trajetos de viagem. Algumas ausências em viagens.
Sexshops. Restaurantes de beira de estrada. Quartos de hotel. Sala de espera em rodoviárias. Embarque de aeroporto.
O cheiro da maconha. A carteira de Lucky Strike que eu compro pra fumar e lembrar dos gestos de uma determinada mulher e seu menear quase frenético de cabeça.

Das canções que tocam aleatoriamente nas playlists, algumas têm endereço. Outras criam e recriam endereços e expressões a todo momento.
Muitas vezes eu refaço essas ações, as provoco exatamente pra sentir as presenças que elas evocam. A paz ou a alegria de alguns passados...
Outras vezes me pego fazendo coisas que não trazem referências. É uma experiência quase budista de vazio. Por vezes é quase mecânico.
É como se esses detalhes que ficaram mantivessem esses amores vivos em mim. São bem específicos, pois houveram amores que não deixaram nada. Nem o oco absurdo do Djavan... Amores que estragam os versos e ainda explodem o fogão.
Acontece.

Assim como sempre acontecerão essas profusões de lembranças em meio aos atos cotidianamente provocados ou não.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Sobre beijar sorrisos


Noite passada, durante uma conversa de whats, minha interlocutora (se é que assim posso chamar aquele com quem interajo sem locução) fez o favor de trazer uma lembrança daquelas que nos colocam sorrisos luminosos no rosto do nada e que sempre vem acompanhada com um suspiro.

“Você me beijou e disse que gosta de beijar sorrisos. E aí eu sorri mais ainda!”

Quase dois anos depois essa lembrança resgatada passa as horas me fazendo suspirar com uma saudade dos instantes. Estes que sempre nos fogem e que nunca capturaremos, pois não há instante morto. Os instantes talvez sejam as coisas mais vivas que temos, mesmo que a gente não perceba. Se formos budistas por um instante, perceberemos alguns detalhes presos no tempo dos instantes.

Uma ex-namorada e profunda fã e incentivadora da minha prática budista de meditação, certa vez me escreveu uma carta onde ela iniciava com os versos:

“Quando caminhe,
Limite-se a caminhar.
Quando se sente,
Limite-se a sentar.
E sobretudo, não hesite.”

Estes versos são de um monge chinês da Dinastia Tang: Yunmen Wenyan (também conhecido por Unmon).

Versos são distantes no tempo, tão reproduzidos no tempo que parecem ter tornado seu significado em algo eterno: consciência no momento presente.

E são estes mesmos versos que ecoam como uma canção durante a lembrança trazida daquele instante de um ano e meio atrás. Não recordava de uma palavra dita. Mas quando me deram a lembrança das palavras, também me deram a lembrança do calor do rosto e da nuca dela, da textura dos cabelos, da forma como ela me olhava e o impacto de seu olhar, que me fazia tremer nos intervalos que me afastavam dos seus lábios macios...

Eram nossos últimos beijos.

Não sabíamos.

Minhas lembranças se concentram entre o olhar dela e o momento em que ela já pedalava na esquina rumo a sua casa.

Outros encontros perdidos e desorganizados viriam. E junto com eles, um certo desconcerto que era – e ainda é – fruto de coisas que não se iniciaram e que por isso não findaram... Abraços capazes de contar sobre afetos com precisão cirúrgica! Aquele instante ecoa na minha existência e acredito que na dela também... Mesmo que outros caminhos tenham cruzado os nossos... Mesmo que tenham ficado ou não. Ainda que algumas escolhas ou a ausência destas tenham nos afastado, há algo que ainda me faz tremer quando penso nela e sou tomada por uma enxurrada de lembranças que vão desde um cigarro oferecido como forma de iniciar um contato (oferecido por ela, óbvio) até a recordação de nosso último encontro, numa tarde de sol com um café sem açúcar servido numa caneca do Led Zepplin – que fora presente de outro amor. Sem açúcar, mas cheio de afeto. Sem beijos, mas cheio de intensidade. O desconforto em conter o corpo que gritava de alegria pela presença dela. As mãos desejando tocar as mãos dela. O medo de que ela se sentisse desconfortável.

Mas toda e qualquer dúvida sobre qualquer coisa no mundo ou nas ideias ficavam suspensas em algum plano ou pareciam resolvidas no instante do abraço. Aquele instante em que os corpos começam a se tocar até que estejam finalmente unidos. Mais do que estar em seus braços é o instante do toque que me comove. Assim como o instante em que o cheiro dela começa a adentrar minhas narinas e meus poros... Em segundos estou tomada.

E esse enlaçamento é algo que ficou. Especialmente nestes dias solitários de intensa aflição. É como se ela estivesse ao meu lado. A cada uma de suas “ordens médicas” ou sermões de quem é capaz de identificar a morte com precisão maior que uma hipocondríaca em potencial, recrio sua voz e suas expressões faciais. Tento manter essas recriações, mas elas me fogem.

A conversa mansa e afetuosa me dão uma sensação de intimidade tamanha que, sempre que nosso dia finda com o desejo de “boa noite e durma bem”, é como se ela – que dorme sempre antes de mim – estivesse ao meu lado ou no mesmo cômodo. Boa noite que soa íntimo de tão próximo e acalentador.

Penso que essa profusão se instantes nos dizem muito sobre as coisas silenciadas ou simplesmente não ditas. Talvez mais do que a gente mesmo se possibilitou saber.

A gente tem hesitado desde aqueles últimos beijos. Desde que beijei seus sorrisos.

Talvez alguns instantes fiquem. Ou se transformem em outras coisas mais constantes, como os suspiros que dou a cada lembrança, ou quando envolvo com as mãos uma caneca de leite com açúcar queimado e recosto em busca de usufruir destes pequenos cuidados que ela tenta deixar na minha vida a cada contato.
E mesmo que a gente saiba das possibilidades de não mais haver beijos, abraços, encontros espontâneos ou planejados...   E mesmo que a gente passe mais dias, mais meses ou até mesmo o tempo que nos resta sem contato algum, devo confessar que ela me dá a sensação de que há algo entre nós que a gente não consegue ou que a gente vai demorar pra perder.

Algo que está além da sensação boa de presença, de cuidado, de carinho, de estar junto mesmo com as dificuldades dos dias. Parece que há algo entre nós, na cumplicidade do sorrir e do beijar, que apenas nós identificamos – mesmo que a gente não saiba o que é.

Sabemos que é bom. Mesmo eu estando aqui, do outro lado.


O que fazer com as hesitações?

Tenho me perguntado e buscado na memória quais foram os últimos sorrisos que beijei...

... os últimos.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Sobre Kant, Schopenhauer, Arendt, um cara à mesa e a determinação de papéis de gênero e naturalização do “estado de degradação ao qual a mulher é reduzida por várias causas”.


Às vezes me questiono se estou sendo uma feminista neurótica quando me encontro diante de algumas situações. E na sequência, me questiono se é possível que haja uma feminista neurótica, ou apenas uma mulher que o machismo neurotizou com suas diversas faces... E essa neurotização, não coloco aqui como patologia, mas uma metáfora que tentaria justificar as feministas que são alvo de comentários do tipo “vê machismo em tudo”. E eu acho que, se levar em consideração toda a violência histórica contra a mulher, é possível sim, ver machismo em tudo. Até porque esse ‘tudo’ é questão de interpretação. E pra interpretar, usamos vários elementos que compõem nossa rede de conhecimentos: informações/experiências pessoais ou ‘aprendidas/apreendidas’ nos processos de formação cultural e social (e aí, poderíamos dividimo-nos entre os que simplesmente aceitam ou engolem conteúdos, e aqueles que questionam e/ou tentam modificar as diversas situações nas quais estamos inseridos).
Hoje eu vi aquilo que eu chamaria de um kantiano (mas não sei se é ou se estava apenas trabalhando com Kant naquele momento, mesmo depois do que se seguiu) usando de forma naturalizada algumas das informações perpetuadas por Kant na Filosofia contra direitos igualitários entre homens e mulheres, ou mulheres e cidadãos, ou ainda, contra humanidade para as mulheres.
“A mulher é a humanidade excluída da Humanidade.”
Essa frase é da Wollstonecraft, autora com quem trabalho. Mas quando ela fala de mulher, inclui todos os outros grupos (se é que posso chamar assim) historicamente excluídos. Pra Mary Wollstonecraft, o Feminismo é a reivindicação de humanidade para todos estes excluídos da Humanidade, e que estiveram atirados ao limbo histórico até hoje junto às mulheres. Mas essa também não é a questão no momento.
Então...
Hoje eu assistia uma mesa sobre “A ajuda aos pobres na Doutrina do Direito de Kant”, que para estas linhas é um tanto irrelevante – ao menos por enquanto, mas posso mudar de opinião até o derradeiro ponto final. Ao fim da apresentação, uma professora apontou uma fala do cara à mesa como falha. Nesta fala, ele apontou que Arendt e Schopenhauer consideravam o Kant dos anos 90 “gagá”, senil. E a professora disse que não era o caso de Arendt, pois esta usou e validou muitas obras do autor nesta época. E eis que surgiu a frase que começou a despertar o grito de Xena em mim: “É mesmo?! Pois faz muito mais sentido que a Hannah Arendt enxergasse o Kant senil do que o Shopenhauer.”
Penso que tive o mesmo sentimento de interrogação que a professora pareceu ter... Aquela coisa de “não entendi onde você quer chegar com essa afirmação, mas sinto um cheiro nada agradável..”
E a professora, ousada – ou não -, decidiu perguntar o motivo da afirmação. E o cara da mesa respondeu que pelo fato de Arendt ser mulher.
“Como assim? O quê o gênero tem a ver com ver Kant como gagá?”
Penso que essa frase traduzia nossa cara no momento... E vieram algumas frases do tipo: “As mulheres conhecem mais os homens que eles mesmos”, “Freud disse que queria ser mulher para descobrir o mistério de ser uma”, “Curioso como os filósofos constantemente colocam que gostariam de saber como é ser mulher, mas nunca quiseram saber como é ser homem”...
Nesse momento eu me identifiquei com a Chauí, naquele momento do Stand Up da Classe Média Paulistana, quando ela diz “tudo o que tinha de ter de ruim no meu ser... TUDO! Tudo aquilo que minha mãe tentou consertar e não conseguiu... Subiu e numa grande onda incontrolável...” Mas eu sou uma boa virginiana, observadora. E ele, o kantiano banal, que não era capaz de enxergar que o discurso em tom irônico expressava exatamente o que Kant pensava das mulheres. E ele estava reproduzindo, 200 anos após a morte de Kant. Tá, já vi um professor usar o discurso kantiano para justificar e manter “o estado de degradação ao qual a mulher é reduzida”... Aliás, isso é parte do título do capítulo IV do livro “Reivindicação dos Direitos das Mulheres”, de Mary Wollstonecraft, publicado em 1792. O nome do capítulo é “Observações sobre o estado de degradação ao qual a mulher é reduzida por várias causas”. Obra e capítulo com o qual estou trabalhando em minha monografia.
Mas voltemos à neurose, que na verdade, não passa de relações que se faz entre os acontecimentos presentes e o acúmulo de informações que a individua aqui, “neurótica da vez”, fez.
Por que esse pensamento de que as mulheres conhecem mais os homens?
Rousseau, com seu Emílio, afirma que a mulher foi feita para agradar o homem. E Kant, em sua Antropologia, naturaliza uma inclinação da mulher para agradar. E como se agrada alguém? Conhecendo esse alguém.
Espera-se – no caso do cara à mesa – que as mulheres conheçam os homens mais que eles mesmos, pois historicamente, nos educaram e, de alguma forma é possível afirmar que, ainda hoje, esperam que a gente cumpra essa “função natural” de agradar os homens. Então, por ser uma inclinação natural (!!!) têm essa expectativa a nosso respeito. E por que não afirmar que muitas de nós, mulheres, também não temos as mesmas expectativas a nosso próprio respeito? Não é o meu caso, mas penso que ainda há muitas mulheres com essas expectativas. O que é bem ruim.
E a questão do “querer ser o outro” traz outro problema: a desigualdade. Desigualdade no sentido ruim mesmo, de não reconhecer o outro. Por isso que há essa lenda sobre um tal mistério feminino... Que é impossível entender as mulheres... Realmente, se você tem problemas cognitivos, será impossível entender, não apenas as mulheres mas qualquer outra coisa nessa vida.
Sempre que escuto essa coisa de “não dá pra entender as mulheres” só me vem duas coisas a cabeça: 1. “Burro!” Pobre do asno pela comparação; 2. Será que quando nós, mulheres, falamos, os homens escutam como se falássemos igual a professora do Charlie Brown? (o que ainda me faz pensar que a debilidade seria dos homens que fazem essas colocações).
Wollstonecraft coloca em seu livro Sobre a Educação das Filhas, que, se as mulheres são intelectualmente inferiores aos homens é porque a educação nos foi negada. E que, além disso, nos foi negada desde cedo a participação na esfera pública. As mulheres que se destacaram tiveram que assumir posturas ditas masculinas, para se empoderarem e conseguirem espaços. Em geral, esses espaços conquistados, não o eram para as mulheres, mas para uma determinada mulher que, ainda assim, era vítima de declarações como as que Kant fazia de que “deveria usar barba para expressar a altivez que seu espírito almeja”.
Falar como um homem, estudar como um homem, ter o respeito de um homem... E aí me atrevo a trazer Madonna: “Garotas podem vestir jeans e ter cabelos curtos, porque está tudo bem se parecer com um garoto. Mas para um garoto, se sentir como uma garota é degradante, porque se pensa que ser garota é degradante.” Nenhum filósofo teve que “se portar” como mulher pra conquistar espaços. Muitas filósofas tiveram que “se portar” como homens para conquistarem espaços. E ainda assim, eram alvo de comentários como o de Kant.
Beauvoir nos mostrou bem que não existe mistério nessa tal existência feminina. Apenas nas lendas que os homens criaram para aquilo que não reconhecem como semelhante. “Torna-se mulher!”
Todo esse querer ser mulher para descobrir o caminho para as Índias não passa de um fetiche. Está muito longe de ser um processo de conhecimento. Mesmo que eu possa vir, a algum momento, considerar que determinados fetiches podem gerar algum tipo de conhecimento, mas também não vou me debruçar sobre isso aqui.
Existe uma História que nos diz o que devemos ser. Que diz aos homens também o que eles devem ser. Determinismo.
Determinismo que precisa ser destruído para que se possa ser o que quiser e quando quiser – e se quiser.
Por que era de se esperar que Hannah Arendt e não Schopenhauer reconhecesse o Kant dos anos 90 como gagá (não que o fosse, necessariamente)? Simplesmente por ser mulher e carregar todas essas expectativas historicamente construídas? Por carregar esses ‘mistérios’ femininos que nos tornam bruxas e feiticeiras?
Hora de parar de usar gênero pra justificar coisas que não se justificam mais. Não há mais argumentos para continuar a perpetuar estados de degradação para reduzir nem mulheres e nem homens e nem além. 
Mas a Feminista Neurótica Histórica aqui, considera pauta vencida com poesia de Caetano:

“Não me venha falar na malícia
De toda mulher
Cada um sabe a dor e a delícia
De ser o que é


Não me olhe
Como se a polícia andasse atrás de mim
Cale a boca e não cale na boca
Notícia ruim


Você sabe explicar,
Você sabe entender tudo bem
Você está, você é
Você faz, você quer, você tem


Você diz a verdade
A verdade é o seu dom de iludir
Como pode querer
Que a mulher vá viver sem mentir”



   




     

domingo, 13 de outubro de 2013

Pesquisa Acadêmica = Viagem na faixa!


Sou estudante de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas/RS e tenho vulnerabilidade socioeconômica, o que me permite viver na Casa do Estudante e ter alimentação gratuita no RU. Resumindo: faço parte de um grupo de estudantes de graduação que não tem fonte de renda e nem ajuda e familiares.

Legal, mas o que alguém que vive nessas condições tem a acrescentar sobre viagens?

Bem, a verdade é que sei muito bem como ser vagabunda profissional, ou, mais precisamente, vagabunda acadêmica ou graduando. E resolvi, inspirada pelo blog Vagabundo Profissional (http://vagabundoprofissional.com/) compartilhar um pouco da minha experiência em viajar às custas da universidade.

Eu, sempre na estrada, com camisa da universidade pra facilitar identificação na carona.

Companheiro e vizinho Mário Jr, também devidamente identificado com camisa da UFPel.


Vejo muitas pessoas ao meu redor, dentro da universidade, reclamando que não podem viajar, seja porque não têm grana, seja por falta de tempo, seja porque não podem faltar na faculdade. A verdade é que, isso não pode ser usado como argumento quando você tem real envolvimento com a vida acadêmica e, especialmente, com a militância estudantil. E quando eu falo em militância não me refiro a envolvimento com partidos políticos, coletivos, DCEs ou centros acadêmicos. Pois você não precisa fazer parte destes grupos pra observar as condições educacionais, especialmente do ensino público, e lutar por melhorias.

Ok. Mas, outra vez: o que isso tem a ver com viagens?

Nenhuma dessas desculpas supracitadas podem ser usadas como argumento para não viajar durante a vida acadêmica. Não é todo mundo que tem grana pra férias. Mas qualquer um, com devido planejamento e comprometimento, consegue viajar na faixa e de quebra conviver durante alguns dias com pessoas de diversos lugares e hábitos diferentes, além de ter experiências acadêmicas que acrescentam o currículo, geram certificados e horas de atividades extracurriculares.

Carona com O Bailarino

Carona com Jerry Adriani (!!)

Chegada em Floripa, recepcionados pelos residentes da CEU UFSC, no ERECE Sul 2012


Em geral, todos os cursos – ou ao menos os mais tradicionais – possuem organizações estudantis a nível nacional, que constroem encontros e congressos de estudantes. Por exemplo, a Filosofia tem a ABEF (Associação Brasileira dos Estudantes de Filosofia), que organiza anualmente dois eventos: ENEFIL (Encontro Nacional dos Estudantes de Filosofia) e o COBREFIL (Congresso Brasileiro dos Estudantes de Filosofia), sendo este último de caráter organizativo e político. Mas em ambos, estudantes de Filosofia de todo o país se reúnem pra apresentar trabalhos, assistir palestras organizadas pelos próprios estudantes, com assuntos também escolhidos por nós, e, por vezes, escolhemos até os palestrantes.

Fora os encontros e congressos nacionais de cursos, ainda existem os encontros regionais.
No meu caso, que sou residente de Casa de Estudante, ainda conto com encontros nacionais e regionais de Casas de Estudantes, e mais os pré-encontros de Casas, tanto nacional como regional, com caráter organizativo dos encontros.

Mas de que adianta ter tantos eventos que acontecendo anualmente em cidades diferentes se não tenho dinheiro pra viajar?

Bom, essa é a parte importante.

Não se pode esquecer as Culturais diárias que os encontros promovem pra rolar o intercâmbio cultural

Alojamento com teto é luxo pra quem costuma acampar em posto de gasolina. Fotos do EREFIL Sul 2011 - UFSC


As universidades investem em estudantes que produzem e participam de eventos apresentando trabalhos e divulgando, assim, o nome da instituição. Em geral, quando se apresenta trabalhos ou se ministra atividades ou oficinas nestes eventos, ganha-se um certificado de apresentação de trabalho, além do de participação, e por vezes, conta-se com publicações de artigos. E isso é muito bem visto pelas universidades. Desta forma, fica fácil conseguir pela tua própria instituição de ensino, financiamento de passagens, diárias e até inscrição nos eventos. Tudo pra garantir que o estudante, ao divulgar seu trabalho, divulgue também, o nome da instituição.

E se um grupo grande de estudantes vai apresentar trabalho no mesmo evento, rola até de conseguir um ônibus por conta da universidade pra levar estes e outros estudantes interessados em participar do evento. Fora os eventos organizados pelo Movimento Estudantil, existem outros eventos específicos organizados pelas próprias universidades, não apenas para seus estudantes, mas aceitam trabalhos e inscrições de estudantes de outras instituições. Geralmente as universidades públicas possuem verba pra viagens para estudantes em participação de eventos. Busque informação, produza conhecimento e corra atrás. Às vezes até rola de pegar carona com outras universidades.  

Cumprindo a proposta, apresentações de trabalhos e troca de experiências acadêmicas são fundamentais

Aproveitando o dia livre pra conhecer as comunidades. Fotos do ENEFIL 2012 UFMA


E se você for morador de Casa de Estudante de alguma universidade, daí você tirou a sorte grande, meu amigo! Sim, ser pobre tinha que ter alguma vantagem...

Então, meu caro companheiro e vizinho residente de CEU, você precisa conhecer os seus direitos. Assistência estudantil não é só casa e comida (e por vezes, roupa lavada). O Decreto Nº 7.234, de 19 de julho de 2010, que dispõe sobre o PNAES – Programa Nacional de Assistência Estudantil, se apresenta com objetivos como “minimizar os efeitos das desigualdades sociais e regionais na permanência e conclusão da educação superior” e também “contribuir para a promoção da inclusão social pela educação.” Ou seja, meu companheiro de assistência estudantil, você pode requisitar a verba do PNAES da sua IFES pra financiar aquele trabalho que tu queria apresentar lá naquele congresso no Oiapoque ou no Chuí. Claro que vai depender se seus argumentos forem convincentes, o trabalho digno e ainda houver sobra dessa grana do PNAES na sua universidade.
E além disso, se você está de férias, mas não tem dinheiro pra viajar e nem se hospedar por aí, muitos eventos estudantis acontecem em feriados prolongados e nas férias (e se você participa de algum durante o período de aulas, com certificado na mão tu pode solicitar abono ou justificar as faltas). Além de tentar carona, seja na estrada (recomendo sempre!), seja com ônibus de universidades vizinhas, sempre rola a hospedagem solidária nas Casas de Estudantes. Mas se liguem! Não é pra qualquer um! Pode até ser que você chegue do nada numa CEU e peça hospedagem por uns dias e consiga. Mas é muito mais fácil se você, como residente de CEU,  participa do Movimento de Casas de Estudantes, e luta por melhores condições de moradia e de assistência estudantil. A militância te permite conhecer companheiros de Casas de vários lugares do país, o que pode te ajudar seja pra uma hospedagem durante um congresso, durante um período de provas, ou mesmo nas férias.

Intercâmbio musical no alojamento do ENEFIL 2011 UFF Niterói

Dia livre com rolê pela orla de Niterói, 2011


Normalmente os eventos possuem dias livres, que te permitem passear e conhecer a cidade onde os eventos acontecem. Hora de fazer turismo! E se você tiver espírito explorador, sairá das rotas tradicionais de turismo pra se arriscar conhecendo coisas novas e diferentes.

Pra vocês terem ideia, em três anos de faculdade, viajei na faixa, com tudo pago pela universidade para São Luis do Maranhão, São Paulo, Florianópolis, Rio de Janeiro, Brasília, Niterói, Rondonópolis, Porto Alegre (essas são as que me recordo). E ainda este ano estou pleiteando mais uma viagem para São Paulo, Salvador, Palotina e Cuiabá. Tudo isso apresentando trabalho de pesquisa. E pras férias, estou vendo carona com ônibus de estudantes pra Fortaleza, e com caminhoneiros – sempre parceiros dos estudantes – para Argentina e Uruguai.

Lutando por mais moradias estudantis nas universidades - ENCE 2013 UFRJ

Ilha de Paquetá, RJ

Oficina de Siriri, com o pessoal da UFMT, durante o ENCE 2013

Parque Nacional da Floresta da Tijuca


Portanto meu caro amigo, sua produção acadêmica pode te ajudar muito a viajar e conhecer lugares e pessoas, mesmo sem nenhum tostão no bolso. Ou melhor ainda, com tudo financiado pela universidade. Assim, você não precisa esperar se formar, entrar no mercado de trabalho e juntar dinheiro pra poder viajar. As oportunidades estão aí.

Procurem seus colegas de cursos pelo país, e as associações de estudantes do teu curso. Fique sempre ligado nos eventos acadêmicos espalhados pelo Brasil – e pelo exterior também. Se informe na sua universidade sobre auxílio viagem. E se você é atendido pela assistência estudantil, se informe sobre o PNAES (decreto disponível no site do MEC http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=607&id=12302&option=com_content&view=article).

Façam valer seus direitos e pé na estrada, não só pra passear, mas pra mostrar seu trabalho e trocar conhecimento. Isso também é formação acadêmica!

E não se esqueça de sempre estar ligado nas oportunidades de mobilidade acadêmica e de intercâmbios! 

Aldeia Maracanã, 2013

Almoçando na Universidade Indígena Aldeia Maracanã

Aldeia Maracanã, Rio.

 
Pôr do Sol em Pelotas durante o Pré-ERECE Sul 2013

Pré-ENCE 2013, UFMT Rondonópolis

Melhor companheira de viagens de todos os tempos, devorando os cocos de Rondonópolis/MT 

Pré-ENCE 2013, UFMT

Feira notura em Rondonópolis, devido ao calor que acontece durante o dia.
Aldeia Maracanã, 2013
Aldeia Maracanã, 2013

Povo do Matogrosso nos presenteando com uma bela peixada

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Feminismo pra quê e pra quem?



A mais rasa das mentes que opta por discutir ou questionar as posturas e ações Feministas de hoje, têm como conhecimento apenas a história do movimento do fim do século XIX pra cá. Isso quando possuem ao menos esse pequeno período da História do Feminismo como informação. Quem não tem a mínima informação ou interesse no movimento, lança sobre às ativistas toda uma gama de preconceitos machistas, construídos, estruturados e difundidos ao longo de toda a história da humanidade – fundamentada num eixo patriarcal e centralizador de poder.
Esse período amplamente difundido como a História no movimento feminista, nada mais é que apenas um período recente desta história. É o período em que o movimento ganha estrutura política e força enquanto movimento social, graças à popularização do anarquismo e do socialismo, e ao aparecimento das teorias marxistas, que ao se mobilizarem em prol do proletariado, buscando desestruturar o sistema de exploração capitalista – que tornara-se mais forte após a Revolução Industrial – abarcam também a questão das mulheres na sociedade.
As mulheres, até a Revolução Industrial, eram excluídas do mercado de trabalho, sendo elas destinadas apenas ao âmbito privado, pois assim, sem contato com a vida social, também estariam sem contato algum com o poder. Lembrando que poucas eram as mulheres privilegiadas, que podiam estudar e freqüentar as altas esferas da sociedade. E em sua maioria, isto era possível serem mulheres com poderes aquisitivos. O que prova que o preconceito de gênero só se agrava com o preconceito social: uma mulher com poder aquisitivo, poderia viver entre os homens, ter acesso à educação, viver sem casar-se...


Karina Buhr em seu blog-manifesto sexoagil.com: "Mulherzinha é o caralho!"

Enfim, a realidade é que o Feminismo antecede muito tudo isso que é apresentado como cronologia do Movimento. Mais que isso: o Feminismo abrange muito mais do que os direitos das mulheres.
Ao longo de toda a história da humanidade, os homens sempre se preocuparam e se ocuparam em encontrar um lugar, uma função social para as mulheres, condicionando-as ao cárcere privado em cavernas, casas, à obrigação da reprodução, à subserviência. Não só no âmbito prático, pois os filósofos também se ocuparam em encontrar esse lugar no mundo para as mulheres; em investigar uma tal ‘natureza feminina’ que, de acordo com eles, era dotada de ‘inferioridade intelectual’, e por isso, não poderia participar da democracia, da vida livre.
O grande e cultuado Aristóteles, em seu famoso livro “Política”, institui esse lugar para a mulher, fora na vida. A mulher é colocada junto aos escravos, estrangeiros, velhos, crianças e animais, num universo de posse. Estes deveriam ter um senhor, serem possuídos. Seres ‘incapazes’ de governarem a si mesmos e, por isso, deveriam ser governados.
Este livro de Aristóteles foi o que estruturou a Pólis grega e fundamentou o ideal de Democracia que se construiu nas sociedades ocidentais. Ainda vemos hoje os reflexos deste destino dado pelos homens livres aos excluídos da vida livre. Mais que isso, outros pensadores extremamente importantes pra história do conhecimento também contribuíram para esta construção de que a mulher é apenas mais uma das posses dos homens livres. Não só as mulheres, mas qualquer um que não pudesse pagar por para ser livre. Na Roma antiga, uma mulher que parisse três filhos homens ganhava a liberdade, por exemplo. E isso ficou ainda mais descarado com Kant, que em suas obras afirma que a mulher deve ter um dono, e que a função dela é ser enfeite e agradar ao seu possuidor. Daí o termo ‘mulher bibelô’.

Olympe de Gouges (1748-1793)

A Revolução Francesa prossegue com o ideal machista, e Rousseau, além de autor de uma obra que ‘ensina’ como educar um homem e como educar uma mulher – O Emílio, Ou Da Educação -, redige também a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), que cumpria exatamente o que prometia: declarar os direitos dos homens (gênero) e dos que podiam ser cidadãos. A prova de que o documento cumpria o que prometia é a gama de documentos surgidos após a publicação deste, reivindicando os direitos das mulheres e das cidadãs, assim como de camponeses e estrangeiros. Exemplo disso, a jornalista e escritora feminista Olympe de Gouges, que dois anos depois da apresentação deste documento sexista, escreve a Declaração dos Direitos das Mulheres e da Cidadã (1791), e foi guilhotinada por desafiar a autoridade masculina com seus escritos.

Mary Wollstonecraft (1759-1797)

Antes de Olympe de Gouges, a professora e escritora feminista inglesa Mary Wollstonecraft escreveu em 1790, A Reivindicação dos Direitos da Mulher, também em retaliação ao documento de Rousseau. E antes mesmo da Revolução Francesa, Poullain de la Barre, escritor e filósofo feminista, questiona a injustiça histórica em relação às mulheres, e faz uso dos princípios cartesianos para denunciar isso e reivindicar igualdade de direitos para as mulheres.

“Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, pois eles são, a mesmo tempo, juiz e parte.” (Poullain de la Barre)

Sóror Juana Ines de la Cruz (1651-1695)

E, curiosamente, no século XVII, uma mexicana, revoltada com o fato de que não poderia entrar em uma universidade e que teria que se casar, opta por se tornar monja, pois desta forma, poderia se dedicar aos estudos, pesquisas e aos seus escritos. Foi desta forma que Juana Ines de la Cruz se tornou um ícone da Literatura Barroca Mexicana. Chamada por muitos de seus contemporâneos por Décima Musa, Sóror Juana produziu aquilo que muitos acreditam ser a produção literária mais rica do México, “permanece insuperável pela universalidade de seu pensamento, o brilho de sua sagacidade, a correção de sua prosa e a magnificência de sua poesia, combinado com o domínio insuperável do conhecimento alegórico e profundo de muitos assuntos.”
Sóror Juana possuía a mais rica biblioteca das Américas em seu tempo, graças aos inúmeros livros que ganhara de presente de inúmeros amigos intelectuais europeus e mexicanos. Mas infelizmente, a inquisição lançou os olhos sobre a importância que Sóror Juana tinha, por conta de todo conhecimento adquirido com anos de estudos, e censuraram e recolheram muitos de seus livros e instrumentos de pesquisa científica, condenando sua busca e transmissão de conhecimento.

FEMEN

Em todos esses casos que antecedem as “ondas” do movimento Feminista que surgem a partir do fim do século XIX, Sóror Juana Ines de la Cruz, Poullain de la Barre, Mary  Wollstonecraft e Olympe de Gouges pautavam a questão da desigualdade que atingia não apenas as mulheres. A reivindicação por cidadania clamavam pelo direito a cultura e educação para todos, e na mesma medida em que estas eram ofertadas aos poderosos. 
Outras pensadores mais contemporâneas reforçam essa solicitação por igualdade social e contra as múltiplas explorações, como Rosa Luxemburgo, Simone Weil e Simone de Beauvoir. Estas produziram material essencial hoje aos movimentos de mulheres.
Wollstonecraft apresentou o Feminismo como uma luta pelos direitos da humanidade, pois a mulher sempre esteve ao lado de outros grupos excluídos. O Feminismo é, inclusive, uma luta pelos direitos de quem não quer ter direitos. Se uma mulher no Oriente Médio quiser seguir viver sob as leis religiosas que governa seu país, que viva por ser uma escolha dela, e não porque aquelas leis lhe são impostas por uma tradição milenar. Que ela tenha direito de escolher se que viver sob os direitos humanos ou sob os direitos dos homens.

Bra-Burning (1968)
Marcha das Vadias - Porto Alegre (2012)

Após a queima de sutiãs de 1968, nada mais natural que a nova onda feminista seja marcada pelos seios à mostra. Penso que podemos declarar sim, que a nova onda foi iniciada e ela se dá de duas formas: 1. A constante construção de voz; e 2. Atos de inversão do uso do corpo.
A dominação machista sempre teve sua expressão máxima por meio da violência física contra mulheres, crianças, LGBTs e outros grupos. O corpo feminino, ainda hoje visto como objeto de desejo ou como mercadoria na gôndola do supermercado, agora é usado como arma. Nas Marchas das Vadias, que ocorrem em todo o mundo, e nos protestos do FEMEN, na Ucrânia e se espalhando pelo mundo também, vemos esse uso bélico do corpo feminino.

“Meus seios são duas bombas!”
Essa afirmação é de uma das ativistas do FEMEN e estudante de Economia, Aleksandra (Sasha) Shevchenko.

Aleksandra Shevchenko (Sasha) - FEMEN Ucrânia
 

O corpo que é visto com desejo de posse agora traz em si mensagens chamando atenção pra violência do Governo, da Igreja e do Machismo contra mulheres e contra toda a sociedade explorada. O mais tarado dos homens, ao centrar seus olhos nos seios expostos das Feministas de hoje, não poderão ignorar as mensagens escritas neles e em todo o corpo. Não poderão ignorar os atos e gritos contra a exploração. Se isso lhes conscientiza ou se potencializa sua ira, só saberemos com o tempo. Mas uma coisa é fato: como bombas, os seios feministas estão realmente chamando atenção para as causas levantadas. Mesmo que por meio de discussões sobre a validade de tirar a roupa ou não para defender uma causa. E nisso, já se discute a causa.
Nas Marchas das Vadias que tomaram as ruas do Brasil em 2012, muitas mulheres tiraram a camisa durante a marcha. Muitas dos casos, a marcha fora escoltada pela polícia. Mas por quê? Porque seios são realmente perigosos e a polícia precisa contê-los pra que a mulher não se sinta dona do próprio corpo, e passe a decidir sobre este. E isso desde a época de Napoleão, as reuniões de mulheres nas ruas são controladas pra que elas não se rebelem.

Repressão a ato machista durante Marcha das Vadias, em Brasília.

É o que acontecem com as gurias do FEMEN. Elas se rebelam contra as opressões, e assim como as Vadias em marcha, pautam em seu corpo e em seus cartazes, assuntos dos mais diversos: aborto, turismo sexual, corrupção, religião, pedofilia, economia, violência, meio ambiente... Todo tipo de controle e exploração machista, por meio do poder.
A nudez enquanto ferramenta sexual é banal. Mas enquanto forma de protesto, é criminalizada, pois ela denuncia, ela informa e chama pra luta. Como a Libeté, de Delacroix, portando a bandeira francesa com os seios à mostra e guiando o à revolução.

Le Liberté guidant le peuple (Delacroix)

“Seios são maravilhosos e símbolo de maternidade. As pessoas não deveriam se assustar ou se ofender com protestos de topless. É a mesma coisa que uma mulher que expõe os seios pra amamentar. Não é assustador. A diferença é que num momento os seios alimentam e em outro ele é uma arma política.” Diz Oksana Shachko, estudante de artes e ativista do FEMEN.
E o FEMEN, ao contrário do que muitos pensam, não é composto apenas por mulheres que se enquadram num padrão de beleza que também é construção patriarcal. Há mulheres de todos os tipos, como Alexandra Nemchivo, uma das principais ativistas ucranianas do grupo, e que faz questão de usar seu corpo como arma contra a exploração, dando prosseguimento e vida a mais uma das bandeiras do movimento feminista de todos os tempos: “Todas as mulheres são bonitas!”, “Mulher bonita é a que luta!”

Alexandra Nemchivo - FEMEN Ucrânia

Digamos que, a tal terceira onda do Feminismo não findou ainda enquanto uma quarta onda se impõe. Um movimento cada vez mais politizado e inclusivo, especialmente em relação às mulheres negras, lésbicas e trans. Mas também, um movimento que não teme o enfrentamento. Mesmo que sejam poucas, já é um número crescente. Podemos perceber isso com o número de Marchas das Vadias que aconteceram apenas no Brasil, em relação ao ano de 2011, assim como a quantidade de mulheres que tiraram a camisa nestas marchas em 2012 – um número infinitamente maior que em 2011. Também podemos observar isso com o crescimento ou expansão do FEMEN, que em 2008, contava apenas com a célula original, na Ucrânia. E hoje, quatro anos depois, foi criado o FEMEN Internacional, que conta com representações e ativistas em 27 países, inclusive o Brasil.

FEMEN em Davos
Oksana Shackho (FEMEN) durante a Euro Copa

“Usar a nudez como arma em protestos políticos é um ato educativo”, conclui Oksana, que em 19 de dezembro de 2011 foi sequestrada com mais duas ativistas da FEMEN, pela KGB bielorrussa, após um protesto no país. As ativistas ficaram em poder dos policiais, sofrendo abusos físicos e psicológicos por mais de 24hs, até serem abandonadas nuas numa estrada afastada da capital. 

Oksana mostra as marcas da agressão policial.

Durante protestos em Kiev, capital da Ucrânia, contra a exploração sexual promovida pelo evento, Oksana foi presa e ficou detida por cinco dias, e hoje responde a dois processos.
E quem há de negar isso em tempos de uso do corpo pela exploração capitalista? 
Nada mais coerente que, após a queima de sutiãs, o novo Feminismo seja feito de peito aberto! Mesmo que muitas ativistas não recebam bem ou não aprovem, ele já é um fato e tem chamado a atenção, visibilidade, e conquistando espaços por meio de pequenas discussões - algumas nem tão pequenas - e quebrado o silêncio ao enfrentar o moralismo, sem vergonha ou medo de mostrar o corpo colorido com mensagens de impacto, como uma verdadeira arma.
E para aqueles que temem o poder de uma mulher livre e de uma sociedade livre, realmente, os seios são bombas!