sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Uma fatalidade, um jazz: Matei Angela Ro Ro

"Mais, foi a primeira palavra que eu me repeti intensamente em minha infância: 'maise, mamãe, maise...'
Fosse guaraná, fosse coca-cola; fosse coca, fosse cola; fosse amor ou desamor ou qualquer outra espécie de dor.
Eu quero é mais ser imortal!! Quero ser o meu futuro ancestral. 
Quero mais tabacaria, mais pessoa, mais maria, mais vinho, mais poesia..."
(Angela Ro Ro)


“Beba comigo a gota de sangue final.”

Ouço neste momento o primeiro trabalho de Angela Ro Ro. Ao mesmo tempo, vou violentando meu ídolo. Desconstruindo quase que num processo de esquartejamento. Doloroso por ser outra mulher. Doloroso por ser uma mulher que passou por uma série de violências que artistas e homossexuais passavam diariamente durante a ditadura.
Ela também cometeu suas violências, seus escândalos, sabemos. Especialmente contra si mesma.
Quem nunca assistiu as imagens da decadência artística de Ro Ro nos anos 80, procure assistir. Essa decadência foi exatamente a minha lembrança mais remota do que é ser tocada pela expressão de alguém. O desespero, o deboche, a ousadia, as muitas coisas ditas de várias formas e com uma voz infernal, capaz de entrar suavemente na jugular e nos fazer morrer aos poucos e quase sem sentir (Me Acalmo Danando), mas que também poderia entrar com a violência de ser atropelada por um trem ou ser torturada por milhões de carrascos por toda a eternidade (Balada da Arrasada).
A voz, a composição, o sentimento de Angela Ro Ro são referências pra mim. Por mais que pra mim, Bethânia seja o divino, Angela Ro Ro é o capeta. E o capeta, o profano é o mais humano. Era Angela que eu queria ser na desgraça da vida.
Hoje, 02 de outubro de 2015, eu mato meu ídolo. De hoje em diante, ela é só uma voz e lembrança. As coisas ditas e escritas por ela a respeito de sua última apresentação em Fortaleza/CE são coisas que eu não tolero. Não posso e por isso transformo a artista brasileira mais humana (nas emoções) em apenas voz e lembrança.

“Pára de matar, pára de morrer!”

Essa postura dela em Fortaleza só me mostra que ela é realmente muito humana... Inclusive em seu pior: racista, xenofóbica, transfóbica, homofóbica, burguesa... Um combo pro tombo, como comentei com um amigo com quem compartilhei o amor e a morte de Ro Ro. “Uma morte horrível”, ele disse. De fato.
Mesmo reconhecendo que, o público do show não é o público para quem ela está habituada a cantar, não é aceitável as ofensas. Apoio os escândalos dela, os pitis de Bethânia. Odeio quando o público não respeita o artista no palco. E quando falo de respeitar, é respeitar o espaço e a voz. E pra isso é necessário silenciar para ouvir – até pra intervir, se for o caso é preciso antes ouvir. É preciso calar o corpo pra receber a voz de Ro Ro dos poros até os ossos.
É muito óbvio que o público do show não estava disposto a experienciar Ro Ro. A forma de experienciar do público LGBTI, quando reunido num evento para estes, é diferente de quando está em outros espaços. Mas o artista precisa saber dizer “não” ou saber transitar entre um público que não vai se comportar como o artista gostaria.
Ofensas ultrapassam o público presente.

Tola foi você, Angela.
Ofender pessoas ou situações hoje é diferente da década de 80. O público também é diferente. Muita coisa. A própria artista é diferente. Ao público habituado com a Angela Ro Ro, ou que conhece sua história, seus escândalos fazem parte de sua arte. Como Madonna e putaria, Angela e escândalo era regra. Ainda é. Mas é preciso olhar pra si e olhar para aquele que se quer atingir e pensar na forma de atingir.
Dessa vez realmente, achamos que a senhora falou demais.
Eu achei.
Falou tanto que virou só voz e lembrança.
Sim, eu iria num show dela novamente. Sou desse público que deixa sua voz adentrar os ossos. Eu jamais estaria num show de Angela onde o público é da Gaga ou da Madonna (mais estaria no show da Madonna com público da Angela). Mas há algo que eu não consigo mais: olhar pra Ro Ro sem lembrar das coisas que ela escreveu, tal “mulher original de fábrica”.
Enquanto mulher, somos companheiras. Enquanto lésbicas, somos companheiras. Enquanto mulher lésbica vítima da polícia durante a ditadura militar, somo companheiras. Mas não pertencemos a mesma classe e nem sou da mesma fábrica que te produziu “mulher original”. E mesmo cariocas, não a enxergo como companheira nisso. Minha percepção de minha cidade natal é diferente, por muitos aspectos: não sou zona sul, não sou da gema, não sou burguesa, e não sou branca.
Suas canções são capazes de ilustrar cada momento de esquartejamento da figura que um dia admirei demais. Hoje, o dia em que matei Angela Ro Ro, ela se torna apenas uma voz que admiro.

 “Tua voz...

Tão difícil de calar, não me diz mais nada.” 

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