Noite passada, durante uma conversa de whats, minha
interlocutora (se é que assim posso chamar aquele com quem interajo sem
locução) fez o favor de trazer uma lembrança daquelas que nos colocam sorrisos
luminosos no rosto do nada e que sempre vem acompanhada com um suspiro.
“Você me beijou e disse que gosta de beijar sorrisos. E aí
eu sorri mais ainda!”
Quase dois anos depois essa lembrança resgatada passa as
horas me fazendo suspirar com uma saudade dos instantes. Estes que sempre nos
fogem e que nunca capturaremos, pois não há instante morto. Os instantes talvez
sejam as coisas mais vivas que temos, mesmo que a gente não perceba. Se formos
budistas por um instante, perceberemos alguns detalhes presos no tempo dos
instantes.
Uma ex-namorada e profunda fã e incentivadora da minha
prática budista de meditação, certa vez me escreveu uma carta onde ela iniciava
com os versos:
“Quando caminhe,
Limite-se a caminhar.
Quando se sente,
Limite-se a sentar.
E sobretudo, não hesite.”
Estes versos são de um monge chinês da Dinastia Tang: Yunmen
Wenyan (também conhecido por Unmon).
Versos são distantes no tempo, tão reproduzidos no tempo que
parecem ter tornado seu significado em algo eterno: consciência no momento
presente.
E são estes mesmos versos que ecoam como uma canção durante
a lembrança trazida daquele instante de um ano e meio atrás. Não recordava de
uma palavra dita. Mas quando me deram a lembrança das palavras, também me deram
a lembrança do calor do rosto e da nuca dela, da textura dos cabelos, da forma
como ela me olhava e o impacto de seu olhar, que me fazia tremer nos intervalos
que me afastavam dos seus lábios macios...
Eram nossos últimos beijos.
Não sabíamos.
Minhas lembranças se concentram entre o olhar dela e o
momento em que ela já pedalava na esquina rumo a sua casa.
Outros encontros perdidos e desorganizados viriam. E junto
com eles, um certo desconcerto que era – e ainda é – fruto de coisas que não se
iniciaram e que por isso não findaram... Abraços capazes de contar sobre afetos
com precisão cirúrgica! Aquele instante ecoa na minha existência e acredito que
na dela também... Mesmo que outros caminhos tenham cruzado os nossos... Mesmo
que tenham ficado ou não. Ainda que algumas escolhas ou a ausência destas
tenham nos afastado, há algo que ainda me faz tremer quando penso nela e sou
tomada por uma enxurrada de lembranças que vão desde um cigarro oferecido como
forma de iniciar um contato (oferecido por ela, óbvio) até a recordação de
nosso último encontro, numa tarde de sol com um café sem açúcar servido numa
caneca do Led Zepplin – que fora presente de outro amor. Sem açúcar, mas cheio
de afeto. Sem beijos, mas cheio de intensidade. O desconforto em conter o corpo
que gritava de alegria pela presença dela. As mãos desejando tocar as mãos
dela. O medo de que ela se sentisse desconfortável.
Mas toda e qualquer dúvida sobre qualquer coisa no mundo ou
nas ideias ficavam suspensas em algum plano ou pareciam resolvidas no instante
do abraço. Aquele instante em que os corpos começam a se tocar até que estejam
finalmente unidos. Mais do que estar em seus braços é o instante do toque que
me comove. Assim como o instante em que o cheiro dela começa a adentrar minhas
narinas e meus poros... Em segundos estou tomada.
E esse enlaçamento é algo que ficou. Especialmente nestes
dias solitários de intensa aflição. É como se ela estivesse ao meu lado. A cada
uma de suas “ordens médicas” ou sermões de quem é capaz de identificar a morte
com precisão maior que uma hipocondríaca em potencial, recrio sua voz e suas
expressões faciais. Tento manter essas recriações, mas elas me fogem.
A conversa mansa e afetuosa me dão uma sensação de
intimidade tamanha que, sempre que nosso dia finda com o desejo de “boa noite e
durma bem”, é como se ela – que dorme sempre antes de mim – estivesse ao meu
lado ou no mesmo cômodo. Boa noite que soa íntimo de tão próximo e acalentador.
Penso que essa profusão se instantes nos dizem muito sobre
as coisas silenciadas ou simplesmente não ditas. Talvez mais do que a gente
mesmo se possibilitou saber.
A gente tem hesitado desde aqueles últimos beijos. Desde que
beijei seus sorrisos.
Talvez alguns instantes fiquem. Ou se transformem em outras
coisas mais constantes, como os suspiros que dou a cada lembrança, ou quando
envolvo com as mãos uma caneca de leite com açúcar queimado e recosto em busca
de usufruir destes pequenos cuidados que ela tenta deixar na minha vida a cada
contato.
E mesmo que a gente saiba das possibilidades de não mais
haver beijos, abraços, encontros espontâneos ou planejados... E mesmo
que a gente passe mais dias, mais meses ou até mesmo o tempo que nos resta sem
contato algum, devo confessar que ela me dá a sensação de que há algo entre nós
que a gente não consegue ou que a gente vai demorar pra perder.
Algo que está além da sensação boa de presença, de cuidado,
de carinho, de estar junto mesmo com as dificuldades dos dias. Parece que há
algo entre nós, na cumplicidade do sorrir e do beijar, que apenas nós
identificamos – mesmo que a gente não saiba o que é.
Sabemos que é bom. Mesmo eu estando aqui, do outro lado.
O que fazer com as hesitações?
Tenho me perguntado e buscado na memória quais foram os últimos sorrisos que beijei...
... os últimos.
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