“Beba comigo a gota de sangue final.”
Ouço neste momento o primeiro trabalho de Angela Ro Ro. Ao
mesmo tempo, vou violentando meu ídolo. Desconstruindo quase que num processo
de esquartejamento. Doloroso por ser outra mulher. Doloroso por ser uma mulher
que passou por uma série de violências que artistas e homossexuais passavam
diariamente durante a ditadura.
Ela também cometeu suas violências, seus escândalos,
sabemos. Especialmente contra si mesma.
Quem nunca assistiu as imagens da decadência artística de Ro
Ro nos anos 80, procure assistir. Essa decadência foi exatamente a minha
lembrança mais remota do que é ser tocada pela expressão de alguém. O
desespero, o deboche, a ousadia, as muitas coisas ditas de várias formas e com
uma voz infernal, capaz de entrar suavemente na jugular e nos fazer morrer aos
poucos e quase sem sentir (Me Acalmo Danando), mas que também poderia entrar com
a violência de ser atropelada por um trem ou ser torturada por milhões de
carrascos por toda a eternidade (Balada da Arrasada).
A voz, a composição, o sentimento de Angela Ro Ro são
referências pra mim. Por mais que pra mim, Bethânia seja o divino, Angela Ro Ro
é o capeta. E o capeta, o profano é o mais humano. Era Angela que eu queria ser
na desgraça da vida.
Hoje, 02 de outubro de 2015, eu mato meu ídolo. De hoje em
diante, ela é só uma voz e lembrança. As coisas ditas e escritas por ela a
respeito de sua última apresentação em Fortaleza/CE são coisas que eu não
tolero. Não posso e por isso transformo a artista brasileira mais humana (nas
emoções) em apenas voz e lembrança.
“Pára de matar, pára de morrer!”
Essa postura dela em Fortaleza só me mostra que ela é
realmente muito humana... Inclusive em seu pior: racista, xenofóbica,
transfóbica, homofóbica, burguesa... Um combo pro tombo, como comentei com um
amigo com quem compartilhei o amor e a morte de Ro Ro. “Uma morte horrível”,
ele disse. De fato.
Mesmo reconhecendo que, o público do show não é o público
para quem ela está habituada a cantar, não é aceitável as ofensas. Apoio os
escândalos dela, os pitis de Bethânia. Odeio quando o público não respeita o
artista no palco. E quando falo de respeitar, é respeitar o espaço e a voz. E
pra isso é necessário silenciar para ouvir – até pra intervir, se for o caso é
preciso antes ouvir. É preciso calar o corpo pra receber a voz de Ro Ro dos
poros até os ossos.
É muito óbvio que o público do show não estava disposto a
experienciar Ro Ro. A forma de experienciar do público LGBTI, quando reunido
num evento para estes, é diferente de quando está em outros espaços. Mas o
artista precisa saber dizer “não” ou saber transitar entre um público que não
vai se comportar como o artista gostaria.
Ofensas ultrapassam o público presente.
Tola foi você, Angela.
Ofender pessoas ou situações hoje é diferente da década de
80. O público também é diferente. Muita coisa. A própria artista é diferente.
Ao público habituado com a Angela Ro Ro, ou que conhece sua história, seus
escândalos fazem parte de sua arte. Como Madonna e putaria, Angela e escândalo
era regra. Ainda é. Mas é preciso olhar pra si e olhar para aquele que se quer
atingir e pensar na forma de atingir.
Dessa vez realmente, achamos que a senhora falou demais.
Eu achei.
Falou tanto que virou só voz e lembrança.
Sim, eu iria num show dela novamente. Sou desse público que
deixa sua voz adentrar os ossos. Eu jamais estaria num show de Angela onde o
público é da Gaga ou da Madonna (mais estaria no show da Madonna com público da
Angela). Mas há algo que eu não consigo mais: olhar pra Ro Ro sem lembrar das
coisas que ela escreveu, tal “mulher original de fábrica”.
Enquanto mulher, somos companheiras. Enquanto lésbicas,
somos companheiras. Enquanto mulher lésbica vítima da polícia durante a
ditadura militar, somo companheiras. Mas não pertencemos a mesma classe e nem
sou da mesma fábrica que te produziu “mulher original”. E mesmo cariocas, não a
enxergo como companheira nisso. Minha percepção de minha cidade natal é diferente,
por muitos aspectos: não sou zona sul, não sou da gema, não sou burguesa, e não
sou branca.
Suas canções são capazes de ilustrar cada momento de
esquartejamento da figura que um dia admirei demais. Hoje, o dia em que matei Angela Ro Ro, ela se torna apenas uma voz que admiro.
“Tua voz...
Tão difícil de calar, não me diz mais nada.”