domingo, 25 de julho de 2010

Preconceito Mascarado e Ingênuo

“Espero que meu próprio sexo me perdoe se trato as mulheres como criaturas racionais em vez de adular suas graças fascinantes e de considerá-las como se estivessem em um estado de infância perpétua.”
MARY WOLLSTONECRAFT, Vindication of the Rights of Woman, 1792

As notícias que ocupam as páginas dos jornais nas últimas semanas são recheadas por uma temática fragmentada e ainda aprisionada: a mulher. Não sei se só eu notei isso, mas é uma constante nos noticiários a violência contra a mulher. De assassinatos brutais à questão do aborto discutida pelas presidenciáveis – e cito apenas as candidatas porque não vejo relevância na opinião masculina quando o assunto é a mulher, e inclusive sou a favor da completa exclusão da participação deles no que diz direito ao feminino.
Parece-me que a condição feminina não mudou muito de 1792 até hoje, 2010, de acordo com o relato de Wollstonecraft.
Minhas linhas certamente serão extensas, mas espero ao menos ser bem clara em minhas intenções de levar um questionamento social aos poucos que se dão ao trabalho de ler o que raramente publico aqui. Saibam que, quando me dou ao trabalho de escrever e publicar é porque a inquietação é maior que minha paciência e tolerância com a burrice e a vocação pra rebanho dos que estão no mundo.
Pra começar, citarei uma tolice que poderia ser ignorada por mim. Mas meu profundo preconceito com os seguidores mascarados do pensamento kantiano de que a função da mulher é enfeitar, me impede de deixar passar esses pequenos detalhes.
Sou do tipo de pessoa que tenta prestar atenção em tudo, inclusive nos jornais atirados ao chão para a limpeza dos calçados. Sempre procuro ler ao menos os enunciados das notícias que piso. E quando diz respeito à condição feminina a atenção é total. E o editorial do jornal Diário da Manhã, de Pelotas, publicado no dia 20 de julho de 2010 me chamou a atenção.
“Mulheres na política” era o título. Um texto que enaltece a participação das mulheres na disputa pelos grandes cargos políticos do país. Eu poderia achar o discurso até digno de um menear positivo de minha cabeça, mas um pequeno detalhe, logo no primeiro parágrafo, me impediu de dar total credibilidade ao anônimo que escreve o editorial deste jornal:

“Nos últimos anos vem aumentando o número de mulheres concorrendo nas eleições em todos os níveis. No pleito deste ano, elas responderam “presente”, uma vez mais. É natural que a campanha eleitoral esteja mais interessante e mais bonita.”

Não sei se vocês compartilham comigo que, de acordo com o texto e com Kant, a presença feminina pressupõe ainda o enfeitar. Duvido que, na ausência de candidatas, o conceito do belo kantiano fosse invocado na política – salvo os veículos de comunicação dedicados às mentes debilitadas e incapazes de exercitar um senso crítico que não seja estético-industrial. (Seria o caso?)
De acordo com Kant, no texto Da Diferença Entre o Belo e o Sublime na Relação Entre os Sexos, a mulher tem a função de enfeitar e inspirar o sentimento do prazer, do agrado e da concordância dos afetos; enquanto o homem, por sua natureza ‘nobre’, tem a função de inspirar respeito.
Seria este ainda o lugar das mulheres no mundo? Vejo de forma confusa essa exaltação pérfida da ascensão feminina no mundo patriarcal, sempre relacionada ao belo, tratando-nos como bibelô. Parece que ainda não conseguimos arquivar esse passado de fragilidades e fraquezas a que o gênero feminino fora destinado pelo pensamento patriarcal.
O patriarcal é essa grande estrutura histórica marcada por um discurso que tem por base o falo, e que muitos pensadores chamaram de logocentrismo, por ser um discurso baseado num modo e estrutura que é fálica, ‘poderosa, e que se define como dona do mundo. Era assim para Aristóteles, Rousseau, Kant e outros tantos.
Os femininos ainda estão relacionados com o belo, com o enfeite social.
Gosto de pensar nos femininos quando me deparo com isso, e vejo que, de acordo com esta função social da mulher, os travestis são muito mais femininos. Eles fazem um esforço que não vem apenas de seu desejo transcendental, mas desta construção patriarcal que definiu que a mulher se enfeita.
Não vejo nenhum problema numa mulher que não usa esses penduricalhos que a inscreve num universo feminino, que nada mais é do que essa ideia débil elevada à indústria cultural. E no fim, é necessário vestir os penduricalhos se quiser ganhar votos, pois a mulher é sim, julgada também pela estética apresentada.
A mulher precisa se impor sim!
Nós, mulheres precisamos exigir autonomia sobre nossas vidas e nossos corpos, pois ainda somos prisioneiras das instituições patriarcais – Estado e Igreja – que nos calam e nos castram ainda. Precisamos pensar, falar e decidir por nós. A mulher precisa reconhecer sua vida e seu corpo como suas únicas propriedades, e assumir responsabilidade por sua autonomia, das decisões mais simples às mais complexas: amar quem quiser, quando quiser e se quiser; fazer o que quiser ou achar melhor com o seu corpo, e isso inclui o aborto.
Uma de nossas presidenciáveis disse que o aborto é uma questão de saúde pública. Pra mim é mais que isso! É uma questão de liberdade!
Concordo com ela que o aborto não é uma questão confortável para mulher alguma. Mas é necessário fazer as perguntas certas sobre o que torna o aborto uma questão de saúde pública. Estas perguntas abrangem questões educacionais, contexto histórico, condição social, interferência religiosa etc. Contudo, nunca deixarei de afirmar que, só uma mulher numa situação de se questionar sobre abortar ou não deve ser capaz de decidir sobre seu corpo. Situações de desconforto nos provocam ao pensamento.
Hannah Arendt dizia que “quando um evento nos faz pensar é porque ele tira o nosso lugar no mundo”. O condicionamento do feminino às decisões do patriarcal me tira o chão, me angustia.

“É esse tipo de evento que provoca o pensamento para que a gente consiga compreender tudo o que aconteceu, para poder se reconciliar com a realidade e poder se realocar no mundo.”
(ARENDT)

O pensar não está a serviço do pensamento, mas a serviço da vida e da nossa locação nela. A relação entre a compreensão e os eventos que nos fazem agir, são compreensões que nos fazem querer recuperar o lugar perdido. Esta é a angústia humana fundamental.
Tenho a impressão de que é essa concepção que Hannah Arendt tem deste tipo de angústia que a leva a pensar e a fazer Filosofia.
Vemos que em Heidegger e Jaspers a questão da angústia é fundamental para o pensamento, mas eles apenas falam sobre essa angústia. Arendt se angustia de verdade, e é desse angustiar-se que ela é capaz de pensar e produzir alguma reflexão que serve a todos. Não é um parâmetro e nem uma regra. Não é uma lição que ela nos dá e que nos faz decidir, mas ela nos ensina a lição de se tornar disponível a ser convocado por essa angústia que os eventos podem nos provocar, do ponto de vista da vida pessoal e da vida coletiva.
Esse angustiar-se é uma característica feminina, e que deveria participar da exaltação da ascensão feminina em campos dominados pela presença masculina. Característica essa que traz novas possibilidades a uma política que precisa ser humanista, não bonita. Essa é a verdadeira contribuição da presença das mulheres para a política.

Um comentário:

Anônimo disse...

Aê Landa!
Falou bonito e com muitas reservas de conteúdo.Concordo inteiramente quando falas da colocação da mulher como um "enfeite" no mundo de hoje, algo que serve apenas para embelezar o ambiente.De maneira alguma, as mulheres são seres extraordinários, fortes, determinados e por traz de toda a fragilidade que citates no post, existe um ser humano feroz e ávido por mudanças construtivas na própria realidade.Me curvo a vocês mulheres, pois, vocês me inspiram e me proporcionam forças e esperanças para continuar a persistir em meus sonhos e almejos.Viva ao poder exponencial da mulher! =)