quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Sobre beijar sorrisos


Noite passada, durante uma conversa de whats, minha interlocutora (se é que assim posso chamar aquele com quem interajo sem locução) fez o favor de trazer uma lembrança daquelas que nos colocam sorrisos luminosos no rosto do nada e que sempre vem acompanhada com um suspiro.

“Você me beijou e disse que gosta de beijar sorrisos. E aí eu sorri mais ainda!”

Quase dois anos depois essa lembrança resgatada passa as horas me fazendo suspirar com uma saudade dos instantes. Estes que sempre nos fogem e que nunca capturaremos, pois não há instante morto. Os instantes talvez sejam as coisas mais vivas que temos, mesmo que a gente não perceba. Se formos budistas por um instante, perceberemos alguns detalhes presos no tempo dos instantes.

Uma ex-namorada e profunda fã e incentivadora da minha prática budista de meditação, certa vez me escreveu uma carta onde ela iniciava com os versos:

“Quando caminhe,
Limite-se a caminhar.
Quando se sente,
Limite-se a sentar.
E sobretudo, não hesite.”

Estes versos são de um monge chinês da Dinastia Tang: Yunmen Wenyan (também conhecido por Unmon).

Versos são distantes no tempo, tão reproduzidos no tempo que parecem ter tornado seu significado em algo eterno: consciência no momento presente.

E são estes mesmos versos que ecoam como uma canção durante a lembrança trazida daquele instante de um ano e meio atrás. Não recordava de uma palavra dita. Mas quando me deram a lembrança das palavras, também me deram a lembrança do calor do rosto e da nuca dela, da textura dos cabelos, da forma como ela me olhava e o impacto de seu olhar, que me fazia tremer nos intervalos que me afastavam dos seus lábios macios...

Eram nossos últimos beijos.

Não sabíamos.

Minhas lembranças se concentram entre o olhar dela e o momento em que ela já pedalava na esquina rumo a sua casa.

Outros encontros perdidos e desorganizados viriam. E junto com eles, um certo desconcerto que era – e ainda é – fruto de coisas que não se iniciaram e que por isso não findaram... Abraços capazes de contar sobre afetos com precisão cirúrgica! Aquele instante ecoa na minha existência e acredito que na dela também... Mesmo que outros caminhos tenham cruzado os nossos... Mesmo que tenham ficado ou não. Ainda que algumas escolhas ou a ausência destas tenham nos afastado, há algo que ainda me faz tremer quando penso nela e sou tomada por uma enxurrada de lembranças que vão desde um cigarro oferecido como forma de iniciar um contato (oferecido por ela, óbvio) até a recordação de nosso último encontro, numa tarde de sol com um café sem açúcar servido numa caneca do Led Zepplin – que fora presente de outro amor. Sem açúcar, mas cheio de afeto. Sem beijos, mas cheio de intensidade. O desconforto em conter o corpo que gritava de alegria pela presença dela. As mãos desejando tocar as mãos dela. O medo de que ela se sentisse desconfortável.

Mas toda e qualquer dúvida sobre qualquer coisa no mundo ou nas ideias ficavam suspensas em algum plano ou pareciam resolvidas no instante do abraço. Aquele instante em que os corpos começam a se tocar até que estejam finalmente unidos. Mais do que estar em seus braços é o instante do toque que me comove. Assim como o instante em que o cheiro dela começa a adentrar minhas narinas e meus poros... Em segundos estou tomada.

E esse enlaçamento é algo que ficou. Especialmente nestes dias solitários de intensa aflição. É como se ela estivesse ao meu lado. A cada uma de suas “ordens médicas” ou sermões de quem é capaz de identificar a morte com precisão maior que uma hipocondríaca em potencial, recrio sua voz e suas expressões faciais. Tento manter essas recriações, mas elas me fogem.

A conversa mansa e afetuosa me dão uma sensação de intimidade tamanha que, sempre que nosso dia finda com o desejo de “boa noite e durma bem”, é como se ela – que dorme sempre antes de mim – estivesse ao meu lado ou no mesmo cômodo. Boa noite que soa íntimo de tão próximo e acalentador.

Penso que essa profusão se instantes nos dizem muito sobre as coisas silenciadas ou simplesmente não ditas. Talvez mais do que a gente mesmo se possibilitou saber.

A gente tem hesitado desde aqueles últimos beijos. Desde que beijei seus sorrisos.

Talvez alguns instantes fiquem. Ou se transformem em outras coisas mais constantes, como os suspiros que dou a cada lembrança, ou quando envolvo com as mãos uma caneca de leite com açúcar queimado e recosto em busca de usufruir destes pequenos cuidados que ela tenta deixar na minha vida a cada contato.
E mesmo que a gente saiba das possibilidades de não mais haver beijos, abraços, encontros espontâneos ou planejados...   E mesmo que a gente passe mais dias, mais meses ou até mesmo o tempo que nos resta sem contato algum, devo confessar que ela me dá a sensação de que há algo entre nós que a gente não consegue ou que a gente vai demorar pra perder.

Algo que está além da sensação boa de presença, de cuidado, de carinho, de estar junto mesmo com as dificuldades dos dias. Parece que há algo entre nós, na cumplicidade do sorrir e do beijar, que apenas nós identificamos – mesmo que a gente não saiba o que é.

Sabemos que é bom. Mesmo eu estando aqui, do outro lado.


O que fazer com as hesitações?

Tenho me perguntado e buscado na memória quais foram os últimos sorrisos que beijei...

... os últimos.