A mais rasa das mentes que opta por discutir ou questionar
as posturas e ações Feministas de hoje, têm como conhecimento apenas a história
do movimento do fim do século XIX pra cá. Isso quando possuem ao menos esse
pequeno período da História do Feminismo como informação. Quem não tem a mínima
informação ou interesse no movimento, lança sobre às ativistas toda uma gama de
preconceitos machistas, construídos, estruturados e difundidos ao longo de toda
a história da humanidade – fundamentada num eixo patriarcal e centralizador de
poder.
Esse período amplamente difundido como a História no
movimento feminista, nada mais é que apenas um período recente desta história.
É o período em que o movimento ganha estrutura política e força enquanto
movimento social, graças à popularização do anarquismo e do socialismo, e ao
aparecimento das teorias marxistas, que ao se mobilizarem em prol do
proletariado, buscando desestruturar o sistema de exploração capitalista – que tornara-se
mais forte após a Revolução Industrial – abarcam também a questão das mulheres
na sociedade.
As mulheres, até a Revolução Industrial, eram excluídas do
mercado de trabalho, sendo elas destinadas apenas ao âmbito privado, pois
assim, sem contato com a vida social, também estariam sem contato algum com o
poder. Lembrando que poucas eram as mulheres privilegiadas, que podiam estudar
e freqüentar as altas esferas da sociedade. E em sua maioria, isto era possível
serem mulheres com poderes aquisitivos. O que prova que o preconceito de gênero
só se agrava com o preconceito social: uma mulher com poder aquisitivo, poderia
viver entre os homens, ter acesso à educação, viver sem casar-se...
Karina Buhr em seu blog-manifesto sexoagil.com: "Mulherzinha é o caralho!" |
Enfim, a realidade é que o Feminismo antecede muito tudo
isso que é apresentado como cronologia do Movimento. Mais que isso: o Feminismo
abrange muito mais do que os direitos das mulheres.
Ao longo de toda a história da humanidade, os homens sempre
se preocuparam e se ocuparam em encontrar um lugar, uma função social para as
mulheres, condicionando-as ao cárcere privado em cavernas, casas, à obrigação
da reprodução, à subserviência. Não só no âmbito prático, pois os filósofos
também se ocuparam em encontrar esse lugar no mundo para as mulheres; em
investigar uma tal ‘natureza feminina’ que, de acordo com eles, era dotada de ‘inferioridade
intelectual’, e por isso, não poderia participar da democracia, da vida livre.
O grande e cultuado Aristóteles, em seu famoso livro “Política”,
institui esse lugar para a mulher, fora na vida. A mulher é colocada junto aos
escravos, estrangeiros, velhos, crianças e animais, num universo de posse.
Estes deveriam ter um senhor, serem possuídos. Seres ‘incapazes’ de governarem
a si mesmos e, por isso, deveriam ser governados.
Este livro de Aristóteles foi o que estruturou a Pólis grega
e fundamentou o ideal de Democracia que se construiu nas sociedades ocidentais.
Ainda vemos hoje os reflexos deste destino dado pelos homens livres aos
excluídos da vida livre. Mais que isso, outros pensadores extremamente
importantes pra história do conhecimento também contribuíram para esta
construção de que a mulher é apenas mais uma das posses dos homens livres. Não
só as mulheres, mas qualquer um que não pudesse pagar por para ser livre. Na
Roma antiga, uma mulher que parisse três filhos homens ganhava a liberdade, por
exemplo. E isso ficou ainda mais descarado com Kant, que em suas obras afirma
que a mulher deve ter um dono, e que a função dela é ser enfeite e agradar ao
seu possuidor. Daí o termo ‘mulher bibelô’.
Olympe de Gouges (1748-1793) |
A Revolução Francesa prossegue com o ideal machista, e
Rousseau, além de autor de uma obra que ‘ensina’ como educar um homem e como
educar uma mulher – O Emílio, Ou Da Educação -, redige também a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão (1789), que cumpria exatamente o que prometia:
declarar os direitos dos homens (gênero) e dos que podiam ser cidadãos. A prova
de que o documento cumpria o que prometia é a gama de documentos surgidos após
a publicação deste, reivindicando os direitos das mulheres e das cidadãs, assim
como de camponeses e estrangeiros. Exemplo disso, a jornalista e escritora
feminista Olympe de Gouges, que dois anos depois da apresentação deste
documento sexista, escreve a Declaração dos Direitos das Mulheres e da Cidadã
(1791), e foi guilhotinada por desafiar a autoridade masculina com seus
escritos.
Mary Wollstonecraft (1759-1797) |
Antes de Olympe de Gouges, a professora e escritora
feminista inglesa Mary Wollstonecraft escreveu em 1790, A Reivindicação dos
Direitos da Mulher, também em retaliação ao documento de Rousseau. E antes
mesmo da Revolução Francesa, Poullain de la Barre, escritor e filósofo
feminista, questiona a injustiça histórica em relação às mulheres, e faz uso
dos princípios cartesianos para denunciar isso e reivindicar igualdade de
direitos para as mulheres.
“Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser
suspeito, pois eles são, a mesmo tempo, juiz e parte.” (Poullain de la Barre)
Sóror Juana Ines de la Cruz (1651-1695) |
E, curiosamente, no século XVII, uma mexicana, revoltada com
o fato de que não poderia entrar em uma universidade e que teria que se casar,
opta por se tornar monja, pois desta forma, poderia se dedicar aos estudos,
pesquisas e aos seus escritos. Foi desta forma que Juana Ines de la Cruz se
tornou um ícone da Literatura Barroca Mexicana. Chamada por muitos de seus
contemporâneos por Décima Musa, Sóror Juana produziu aquilo que muitos
acreditam ser a produção literária mais rica do México, “permanece insuperável pela
universalidade de seu pensamento, o brilho de sua sagacidade, a correção de sua
prosa e a magnificência de sua poesia, combinado com o domínio insuperável do
conhecimento alegórico e profundo de muitos assuntos.”
Sóror Juana possuía a mais rica biblioteca das Américas em seu tempo, graças aos inúmeros livros que ganhara de presente de inúmeros amigos intelectuais europeus e mexicanos. Mas infelizmente, a inquisição lançou os olhos sobre a importância que Sóror Juana tinha, por conta de todo conhecimento adquirido com anos de estudos, e censuraram e recolheram muitos de seus livros e instrumentos de pesquisa científica, condenando sua busca e transmissão de conhecimento.
FEMEN |
Em todos esses casos que antecedem as “ondas” do movimento
Feminista que surgem a partir do fim do século XIX, Sóror Juana Ines de la
Cruz, Poullain de la Barre, Mary Wollstonecraft
e Olympe de Gouges pautavam a questão da desigualdade que atingia não apenas as
mulheres. A reivindicação por cidadania clamavam pelo direito a cultura e
educação para todos, e na mesma medida em que estas eram ofertadas aos
poderosos.
Outras pensadores mais contemporâneas reforçam essa solicitação por igualdade social e contra as múltiplas explorações, como Rosa Luxemburgo, Simone Weil e Simone de Beauvoir. Estas produziram material essencial hoje aos movimentos de mulheres.
Wollstonecraft apresentou o Feminismo como uma luta pelos
direitos da humanidade, pois a mulher sempre esteve ao lado de outros grupos
excluídos. O Feminismo é, inclusive, uma luta pelos direitos de quem não quer
ter direitos. Se uma mulher no Oriente Médio quiser seguir viver sob as leis
religiosas que governa seu país, que viva por ser uma escolha dela, e não porque
aquelas leis lhe são impostas por uma tradição milenar. Que ela tenha direito
de escolher se que viver sob os direitos humanos ou sob os direitos dos homens.
Bra-Burning (1968) |
Marcha das Vadias - Porto Alegre (2012) |
Após a queima de sutiãs de 1968, nada mais natural que a
nova onda feminista seja marcada pelos seios à mostra. Penso que podemos
declarar sim, que a nova onda foi iniciada e ela se dá de duas formas: 1. A
constante construção de voz; e 2. Atos de inversão do uso do corpo.
A dominação machista sempre teve sua expressão máxima por
meio da violência física contra mulheres, crianças, LGBTs e outros grupos. O
corpo feminino, ainda hoje visto como objeto de desejo ou como mercadoria na
gôndola do supermercado, agora é usado como arma. Nas Marchas das Vadias, que
ocorrem em todo o mundo, e nos protestos do FEMEN, na Ucrânia e se espalhando
pelo mundo também, vemos esse uso bélico do corpo feminino.
“Meus seios são duas bombas!”
Essa afirmação é de uma das ativistas do FEMEN e estudante
de Economia, Aleksandra (Sasha) Shevchenko.
Aleksandra Shevchenko (Sasha) - FEMEN Ucrânia |
O corpo que é visto com desejo de posse agora traz em si
mensagens chamando atenção pra violência do Governo, da Igreja e do Machismo
contra mulheres e contra toda a sociedade explorada. O mais tarado dos homens,
ao centrar seus olhos nos seios expostos das Feministas de hoje, não poderão ignorar
as mensagens escritas neles e em todo o corpo. Não poderão ignorar os atos e
gritos contra a exploração. Se isso lhes conscientiza ou se potencializa sua
ira, só saberemos com o tempo. Mas uma coisa é fato: como bombas, os seios
feministas estão realmente chamando atenção para as causas levantadas. Mesmo
que por meio de discussões sobre a validade de tirar a roupa ou não para
defender uma causa. E nisso, já se discute a causa.
Nas Marchas das Vadias que tomaram as ruas do Brasil em
2012, muitas mulheres tiraram a camisa durante a marcha. Muitas dos casos, a
marcha fora escoltada pela polícia. Mas por quê? Porque seios são realmente
perigosos e a polícia precisa contê-los pra que a mulher não se sinta dona do
próprio corpo, e passe a decidir sobre este. E isso desde a época de Napoleão,
as reuniões de mulheres nas ruas são controladas pra que elas não se rebelem.
Repressão a ato machista durante Marcha das Vadias, em Brasília. |
É o que acontecem com as gurias do FEMEN. Elas se rebelam
contra as opressões, e assim como as Vadias em marcha, pautam em seu corpo e em
seus cartazes, assuntos dos mais diversos: aborto, turismo sexual, corrupção,
religião, pedofilia, economia, violência, meio ambiente... Todo tipo de controle
e exploração machista, por meio do poder.
A nudez enquanto ferramenta sexual é banal. Mas enquanto
forma de protesto, é criminalizada, pois ela denuncia, ela informa e chama pra
luta. Como a Libeté, de Delacroix, portando a bandeira francesa com os seios à
mostra e guiando o à revolução.
Le Liberté guidant le peuple (Delacroix) |
“Seios são maravilhosos e símbolo de maternidade. As pessoas
não deveriam se assustar ou se ofender com protestos de topless. É a mesma
coisa que uma mulher que expõe os seios pra amamentar. Não é assustador. A
diferença é que num momento os seios alimentam e em outro ele é uma arma
política.” Diz Oksana Shachko, estudante de artes e ativista do FEMEN.
E o FEMEN, ao contrário do que muitos pensam, não é composto
apenas por mulheres que se enquadram num padrão de beleza que também é
construção patriarcal. Há mulheres de todos os tipos, como Alexandra Nemchivo, uma
das principais ativistas ucranianas do grupo, e que faz questão de usar seu
corpo como arma contra a exploração, dando prosseguimento e vida a mais uma das
bandeiras do movimento feminista de todos os tempos: “Todas as mulheres são
bonitas!”, “Mulher bonita é a que luta!”
Alexandra Nemchivo - FEMEN Ucrânia |
Digamos que, a tal terceira onda do Feminismo não findou
ainda enquanto uma quarta onda se impõe. Um movimento cada vez mais politizado
e inclusivo, especialmente em relação às mulheres negras, lésbicas e trans. Mas
também, um movimento que não teme o enfrentamento. Mesmo que sejam poucas, já é
um número crescente. Podemos perceber isso com o número de Marchas das Vadias
que aconteceram apenas no Brasil, em relação ao ano de 2011, assim como a
quantidade de mulheres que tiraram a camisa nestas marchas em 2012 – um número
infinitamente maior que em 2011. Também podemos observar isso com o crescimento
ou expansão do FEMEN, que em 2008, contava apenas com a célula original, na
Ucrânia. E hoje, quatro anos depois, foi criado o FEMEN Internacional, que
conta com representações e ativistas em 27 países, inclusive o Brasil.
FEMEN em Davos |
Oksana Shackho (FEMEN) durante a Euro Copa |
“Usar a nudez como arma em protestos políticos é um ato
educativo”, conclui Oksana, que em 19 de dezembro de 2011 foi sequestrada com mais duas ativistas da FEMEN, pela KGB bielorrussa, após um protesto no país. As ativistas ficaram em poder dos policiais, sofrendo abusos físicos e psicológicos por mais de 24hs, até serem abandonadas nuas numa estrada afastada da capital.
Oksana mostra as marcas da agressão policial. |
Durante protestos em Kiev, capital da Ucrânia, contra a exploração sexual promovida pelo evento, Oksana foi presa e ficou detida por cinco dias, e hoje responde a dois processos.
E quem há de negar isso em tempos de uso do corpo pela
exploração capitalista?
Nada mais coerente que, após a queima de sutiãs, o novo Feminismo seja feito de peito aberto! Mesmo que muitas ativistas não recebam bem ou não aprovem, ele já é um fato e tem chamado a atenção, visibilidade, e conquistando espaços por meio de pequenas discussões - algumas nem tão pequenas - e quebrado o silêncio ao enfrentar o moralismo, sem vergonha ou medo de mostrar o corpo colorido com mensagens de impacto, como uma verdadeira arma.
E para aqueles que temem o poder de uma mulher livre e de uma sociedade livre, realmente, os seios são bombas!
3 comentários:
Adorei o texto. Escevi um parecidinho no meu primeiro ano de graduação de história. Está disponível em http://trialetica.blogspot.com.br/2007/02/paradoxo-iluminista-situao-das-mulheres.html
Se tiver tempo da uma passada lá. Add no meu FB
Abraços.
Liana Machado
bah!
massa, Liana!
vou ler agora!!!
abraços.
Texto de utilidade publica.
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