Pois bem, os cortes destes benefícios assim como a alta dos alimentos e outros bens de consumo para subsistência atingem exatamente essas mesmas mulheres que são responsáveis por outras vidas.
A história do homem como provedor sempre foi só uma alegoria, pois ainda hoje eles só proveem quando acham conveniente, com o que acham conveniente, se acham conveniente ou sob obrigação judicial (e olhe lá).
É muito evidente que as mulheres sempre foram as responsáveis - e assim continuam - por manter crianças, jovens e idosos do núcleo familiar. Desde os cuidados afetivos, aos cuidados com a alimentação, sempre sobrou para a mulher a responsabilidade. (E não me venham com "mas nem todo ome", pois isso não gera estatísticas e nem transformação social.)
Quando o Governo Temer corta esses benefícios, acontece o primeiro passo para prejudicar famílias e uma sociedade inteira: a tirada de autonomia financeira de mulheres. Mais especificamente, de mulheres pobres.
Perdendo essa autonomia, as mulheres em condições de vulnerabilidade socioeconômica estão muito mais sujeitas a violências de todos os tipos. A começar (sempre) pela violência doméstica. Sujeitando-se a homens para ter que prover seus filhos e seus idosos de bens básicos, ficam expostas a violências que vão desde a níveis psicológicos a agressões físicas e exploração e abusos sexuais, não só de seus corpos e de sua existência, mas também de seus filhos.
Óbvio que prejudicar essas mulheres significa também prejuízo para os homens. A misoginia é violência contra toda a humanidade.
Quem teve estômago para assistir a série O Conto da Aia (The Handmaid's Tale), baseada em obra homônima de Margareth Atwood, viu que o primeiro passo que a República de Gileade deu para retomar o domínio social e político sobre os corpos das mulheres foi tirando sua autonomia e independência financeira ao proibir que se empregassem mulheres, ao proibir mulheres como titulares de contas bancárias e transferindo o dinheiro das contas destas para o membro XY mais próximo da mulher, ao proibir que se prestassem serviços para mulheres que não estivessem acompanhadas por um homem, e ao devolver as mulheres para a tutela dos machos ou do próprio governo - quando fosse o caso.
Manter as mulheres sem recursos pra prover a si mesma e aos seus, quando estas não possuem acesso a educação de qualidade e meios de sobrevivência pelos quais ela possa garantir bens básicos, é empurrá-las para arranjos matrimoniais, sujeição a exploração sexual, prostituição, exploração infantil, pedofilia, trabalho em situação análoga a escravidão, exploração do trabalho doméstico, sujeição especialmente de gestantes a trabalhos que coloquem sua saúde e a saúde do bebê em risco...
As mulheres morrem de várias formas.
Morremos quando não conseguimos garantir o bem-estar e a sobrevivência daqueles que dependem de nós ou com os quais nos comprometemos moralmente. Morremos com o choro faminto de nossos filhos, ou com a dificuldade em ofertar a estes igualdade de oportunidades para estudarem e se desenvolverem. Morremos a cada tapa ou mesmo pegada no braço que vem nos intimidar. Morremos com cada olhar de assedio. Morremos sempre que ouvimos que uma mulher - mesmo que nos seja estranha - foi estuprada. Morremos sempre que uma criança é estuprada ou violentada. Morremos sempre que vemos a fome, o preconceito e a dor de outros vulneráveis. Mesmo os que nos são estranhos.
Pois quando se tem consciência de que essas dores são comuns, nos afetamos e compartilhamos delas. Quando não se tem essa consciência, é fácil viver - na ignorância e inclusive fomentando estas violências em alguns momentos ou o tempo todo.
O que os cortes em benefícios sociais prioritariamente direcionados a responsabilidade das mulheres como chefes de família significa nada menos que mais uma página escrita e avançada no Conto da Aia do Governo Temer.
Uma história que começou com a construção de um golpe político que tirou uma mulher do poder e outras tantas, e em seus lugares, colocaram homens que extinguiram Ministérios, políticas públicas e estão mexendo em leis que minimamente buscavam garantir a segurança para as mulheres.
Leis e políticas que eram e ainda são migalhas, mas ainda assim importantes para cada mulher - esteja ela se beneficiando delas ou não. Pois como Angela Davis diz, "quando uma mulher negra se ergue, ela ergue o mundo inteiro com ela". E sabemos que as negras são maioria absoluta das mulheres prejudicadas pelo Conto da Aia de Michel Temer...
Mas sabemos que elas são apenas as primeiras a serem derrubadas por mais esse golpe? Isso tudo é parte de um processo de extermínio e controle social, racial, político e misógino.
A gente, que tá nas universidades, que tá empregada em empresas ou no sistema público, ou mesmo as que não trabalham mas possuem uma vida onde não precisam se preocupar com as contas ou com o que vai comer ou se vai ter o que comer, estamos agora confortáveis - de certa forma - em nossos lugares. Nos sentindo livres, mesmo arrebatadas com a indignação com o quadro político, social e econômico. Mas se sairmos um pouco de nossa torre de marfim e colocar o pé no chão, olhando atentamente as outras mulheres a nossa volta - aquelas que levantam de madrugada pra encarar transporte público precário e lotado em engarrafamentos quilométricos e assédio lá dentro rumo a um trabalho precarizado onde encontram mais assédio, riscos e remuneração baixa - é possível enxergar esse combo de violências pelas quais passam mulheres que estão distantes de nossa condição.
Existem condições que nos unem, mas que teimamos em ignorar ou só evocar por conveniência, em benefício próprio. Não enxergamos que cuidar das outras, especialmente das que estão mais expostas é cuidar de nós mesmas. Fortalecê-las é fortalecer a nós mesmas. Garantir a vida delas é garantir a nossa.
Garantindo a vida das mulheres mais vulneráveis, garantimos a vida de toda a humanidade.
Pensem nisso antes de votar - caso ainda acreditem nisso.
Pensem nisso antes de dormir e ao acordar.
Pensem nisso antes de cada gole de cerveja ou de cada mastigar da refeição consumimos.
Pensem nas mulheres.
Pensem nas mulheres marginalizadas.
Pensemos no que vamos fazer ou se vamos seguir sentados assistindo.
Ou se vamos pras ruas apenas gritar e passear com cartazes.
Pra quem já está condenada morte pela fome, morrer pela bala numa luta é um favor.
Enquanto a gente segue quieto, esperando eleições pra "mudar", eles, aqueles homens, velhos, brancos e ricos que estão no poder, preparam tudo para que as eleições sigam sendo apenas um processo de ilusão de que temos um Estado democrático onde temos liberdade para escolher "representantes".
Não temos nada.
Eles já mostraram que, além de tudo isso ser ilusão, eles podem mudar as coisas em favor deles e o farão sempre que acharem necessário.
"Um rato num labirinto é livre para ir a qualquer lugar, contanto que ele permaneça dentro do labirinto."
(ATWOOD, Margareth.)
Reportagem sobre o corte de mais de meio milhão de bolsas:
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