Às vezes me questiono se estou sendo uma feminista neurótica
quando me encontro diante de algumas situações. E na sequência, me questiono se
é possível que haja uma feminista neurótica, ou apenas uma mulher que o
machismo neurotizou com suas diversas faces... E essa neurotização, não coloco
aqui como patologia, mas uma metáfora que tentaria justificar as feministas que
são alvo de comentários do tipo “vê machismo em tudo”. E eu acho que, se levar
em consideração toda a violência histórica contra a mulher, é possível sim, ver
machismo em tudo. Até porque esse ‘tudo’ é questão de interpretação. E pra
interpretar, usamos vários elementos que compõem nossa rede de conhecimentos:
informações/experiências pessoais ou ‘aprendidas/apreendidas’ nos processos de formação
cultural e social (e aí, poderíamos dividimo-nos entre os que simplesmente
aceitam ou engolem conteúdos, e aqueles que questionam e/ou tentam modificar as
diversas situações nas quais estamos inseridos).
Hoje eu vi aquilo que eu chamaria de um kantiano (mas não sei se é
ou se estava apenas trabalhando com Kant naquele momento, mesmo depois do que
se seguiu) usando de forma naturalizada algumas das informações perpetuadas por
Kant na Filosofia contra direitos igualitários entre homens e mulheres, ou
mulheres e cidadãos, ou ainda, contra humanidade para as mulheres.
“A mulher é a humanidade excluída da Humanidade.”
Essa frase é da Wollstonecraft, autora com quem trabalho. Mas
quando ela fala de mulher, inclui todos os outros grupos (se é que posso chamar
assim) historicamente excluídos. Pra Mary Wollstonecraft, o Feminismo é a
reivindicação de humanidade para todos estes excluídos da Humanidade, e que
estiveram atirados ao limbo histórico até hoje junto às mulheres. Mas essa
também não é a questão no momento.
Então...
Hoje eu assistia uma mesa sobre “A ajuda aos pobres na Doutrina do
Direito de Kant”, que para estas linhas é um tanto irrelevante – ao menos por
enquanto, mas posso mudar de opinião até o derradeiro ponto final. Ao fim da
apresentação, uma professora apontou uma fala do cara à mesa como falha. Nesta
fala, ele apontou que Arendt e Schopenhauer consideravam o Kant dos anos 90 “gagá”,
senil. E a professora disse que não era o caso de Arendt, pois esta usou e
validou muitas obras do autor nesta época. E eis que surgiu a frase que começou
a despertar o grito de Xena em mim: “É mesmo?! Pois faz muito mais sentido que
a Hannah Arendt enxergasse o Kant senil do que o Shopenhauer.”
Penso que tive o mesmo sentimento de interrogação que a professora
pareceu ter... Aquela coisa de “não entendi onde você quer chegar com essa
afirmação, mas sinto um cheiro nada agradável..”
E a professora, ousada – ou não -, decidiu perguntar o motivo da
afirmação. E o cara da mesa respondeu que pelo fato de Arendt ser mulher.
“Como assim? O quê o gênero tem a ver com ver Kant como gagá?”
Penso que essa frase traduzia nossa cara no momento... E vieram
algumas frases do tipo: “As mulheres conhecem mais os homens que eles mesmos”, “Freud
disse que queria ser mulher para descobrir o mistério de ser uma”, “Curioso
como os filósofos constantemente colocam que gostariam de saber como é ser
mulher, mas nunca quiseram saber como é ser homem”...
Nesse momento eu me identifiquei com a Chauí, naquele momento do
Stand Up da Classe Média Paulistana, quando ela diz “tudo o que tinha de ter de
ruim no meu ser... TUDO! Tudo aquilo que minha mãe tentou consertar e não
conseguiu... Subiu e numa grande onda incontrolável...” Mas eu sou uma boa
virginiana, observadora. E ele, o kantiano banal, que não era capaz de enxergar
que o discurso em tom irônico expressava exatamente o que Kant pensava das
mulheres. E ele estava reproduzindo, 200 anos após a morte de Kant. Tá, já vi
um professor usar o discurso kantiano para justificar e manter “o estado de
degradação ao qual a mulher é reduzida”... Aliás, isso é parte do título do
capítulo IV do livro “Reivindicação dos Direitos das Mulheres”, de Mary
Wollstonecraft, publicado em 1792. O nome do capítulo é “Observações sobre o
estado de degradação ao qual a mulher é reduzida por várias causas”. Obra e
capítulo com o qual estou trabalhando em minha monografia.
Mas voltemos à neurose, que na verdade, não passa de relações que
se faz entre os acontecimentos presentes e o acúmulo de informações que a individua
aqui, “neurótica da vez”, fez.
Por que esse pensamento de que as mulheres conhecem mais os
homens?
Rousseau, com seu Emílio, afirma que a mulher foi feita para
agradar o homem. E Kant, em sua Antropologia, naturaliza uma inclinação da
mulher para agradar. E como se agrada alguém? Conhecendo esse alguém.
Espera-se – no caso do cara à mesa – que as mulheres conheçam os
homens mais que eles mesmos, pois historicamente, nos educaram e, de alguma
forma é possível afirmar que, ainda hoje, esperam que a gente cumpra essa “função
natural” de agradar os homens. Então, por ser uma inclinação natural (!!!) têm
essa expectativa a nosso respeito. E por que não afirmar que muitas de nós,
mulheres, também não temos as mesmas expectativas a nosso próprio respeito? Não
é o meu caso, mas penso que ainda há muitas mulheres com essas expectativas. O
que é bem ruim.
E a questão do “querer ser o outro” traz outro problema: a
desigualdade. Desigualdade no sentido ruim mesmo, de não reconhecer o outro.
Por isso que há essa lenda sobre um tal mistério feminino... Que é impossível
entender as mulheres... Realmente, se você tem problemas cognitivos, será
impossível entender, não apenas as mulheres mas qualquer outra coisa nessa
vida.
Sempre que escuto essa coisa de “não dá pra entender as mulheres”
só me vem duas coisas a cabeça: 1. “Burro!” Pobre do asno pela comparação; 2.
Será que quando nós, mulheres, falamos, os homens escutam como se falássemos
igual a professora do Charlie Brown? (o que ainda me faz pensar que a
debilidade seria dos homens que fazem essas colocações).
Wollstonecraft coloca em seu livro Sobre a Educação das Filhas,
que, se as mulheres são intelectualmente inferiores aos homens é porque a
educação nos foi negada. E que, além disso, nos foi negada desde cedo a
participação na esfera pública. As mulheres que se destacaram tiveram que
assumir posturas ditas masculinas, para se empoderarem e conseguirem espaços.
Em geral, esses espaços conquistados, não o eram para as mulheres, mas para uma
determinada mulher que, ainda assim, era vítima de declarações como as que Kant
fazia de que “deveria usar barba para expressar a altivez que seu espírito
almeja”.
Falar como um homem, estudar como um homem, ter o respeito de um
homem... E aí me atrevo a trazer Madonna: “Garotas podem vestir jeans e ter
cabelos curtos, porque está tudo bem se parecer com um garoto. Mas para um
garoto, se sentir como uma garota é degradante, porque se pensa que ser garota
é degradante.” Nenhum filósofo teve que “se portar” como mulher pra conquistar
espaços. Muitas filósofas tiveram que “se portar” como homens para conquistarem
espaços. E ainda assim, eram alvo de comentários como o de Kant.
Beauvoir nos mostrou bem que não existe mistério nessa tal existência
feminina. Apenas nas lendas que os homens criaram para aquilo que não
reconhecem como semelhante. “Torna-se mulher!”
Todo esse querer ser mulher para descobrir o caminho para as
Índias não passa de um fetiche. Está muito longe de ser um processo de
conhecimento. Mesmo que eu possa vir, a algum momento, considerar que
determinados fetiches podem gerar algum tipo de conhecimento, mas também não
vou me debruçar sobre isso aqui.
Existe uma História que nos diz o que devemos ser. Que diz aos
homens também o que eles devem ser. Determinismo.
Determinismo que precisa ser destruído para que se possa ser o que
quiser e quando quiser – e se quiser.
Por que era de se esperar que Hannah Arendt e não Schopenhauer
reconhecesse o Kant dos anos 90 como gagá (não que o fosse, necessariamente)?
Simplesmente por ser mulher e carregar todas essas expectativas historicamente
construídas? Por carregar esses ‘mistérios’ femininos que nos tornam bruxas e
feiticeiras?
Hora de parar de usar gênero pra justificar coisas que não se
justificam mais. Não há mais argumentos para continuar a perpetuar estados de
degradação para reduzir nem mulheres e nem homens e nem além.
Mas a Feminista Neurótica Histórica aqui, considera pauta vencida com poesia de Caetano:
“Não me venha falar na malícia
De toda mulherCada um sabe a dor e a delícia
De ser o que é
Não me olhe
Como se a polícia andasse atrás de mim
Cale a boca e não cale na boca
Notícia ruim
Você sabe explicar,
Você sabe entender tudo bem
Você está, você é
Você faz, você quer, você tem
Você diz a verdade
A verdade é o seu dom de iludir
Como pode querer
Que a mulher vá viver sem mentir”