terça-feira, 26 de agosto de 2014

Sobre Kant, Schopenhauer, Arendt, um cara à mesa e a determinação de papéis de gênero e naturalização do “estado de degradação ao qual a mulher é reduzida por várias causas”.


Às vezes me questiono se estou sendo uma feminista neurótica quando me encontro diante de algumas situações. E na sequência, me questiono se é possível que haja uma feminista neurótica, ou apenas uma mulher que o machismo neurotizou com suas diversas faces... E essa neurotização, não coloco aqui como patologia, mas uma metáfora que tentaria justificar as feministas que são alvo de comentários do tipo “vê machismo em tudo”. E eu acho que, se levar em consideração toda a violência histórica contra a mulher, é possível sim, ver machismo em tudo. Até porque esse ‘tudo’ é questão de interpretação. E pra interpretar, usamos vários elementos que compõem nossa rede de conhecimentos: informações/experiências pessoais ou ‘aprendidas/apreendidas’ nos processos de formação cultural e social (e aí, poderíamos dividimo-nos entre os que simplesmente aceitam ou engolem conteúdos, e aqueles que questionam e/ou tentam modificar as diversas situações nas quais estamos inseridos).
Hoje eu vi aquilo que eu chamaria de um kantiano (mas não sei se é ou se estava apenas trabalhando com Kant naquele momento, mesmo depois do que se seguiu) usando de forma naturalizada algumas das informações perpetuadas por Kant na Filosofia contra direitos igualitários entre homens e mulheres, ou mulheres e cidadãos, ou ainda, contra humanidade para as mulheres.
“A mulher é a humanidade excluída da Humanidade.”
Essa frase é da Wollstonecraft, autora com quem trabalho. Mas quando ela fala de mulher, inclui todos os outros grupos (se é que posso chamar assim) historicamente excluídos. Pra Mary Wollstonecraft, o Feminismo é a reivindicação de humanidade para todos estes excluídos da Humanidade, e que estiveram atirados ao limbo histórico até hoje junto às mulheres. Mas essa também não é a questão no momento.
Então...
Hoje eu assistia uma mesa sobre “A ajuda aos pobres na Doutrina do Direito de Kant”, que para estas linhas é um tanto irrelevante – ao menos por enquanto, mas posso mudar de opinião até o derradeiro ponto final. Ao fim da apresentação, uma professora apontou uma fala do cara à mesa como falha. Nesta fala, ele apontou que Arendt e Schopenhauer consideravam o Kant dos anos 90 “gagá”, senil. E a professora disse que não era o caso de Arendt, pois esta usou e validou muitas obras do autor nesta época. E eis que surgiu a frase que começou a despertar o grito de Xena em mim: “É mesmo?! Pois faz muito mais sentido que a Hannah Arendt enxergasse o Kant senil do que o Shopenhauer.”
Penso que tive o mesmo sentimento de interrogação que a professora pareceu ter... Aquela coisa de “não entendi onde você quer chegar com essa afirmação, mas sinto um cheiro nada agradável..”
E a professora, ousada – ou não -, decidiu perguntar o motivo da afirmação. E o cara da mesa respondeu que pelo fato de Arendt ser mulher.
“Como assim? O quê o gênero tem a ver com ver Kant como gagá?”
Penso que essa frase traduzia nossa cara no momento... E vieram algumas frases do tipo: “As mulheres conhecem mais os homens que eles mesmos”, “Freud disse que queria ser mulher para descobrir o mistério de ser uma”, “Curioso como os filósofos constantemente colocam que gostariam de saber como é ser mulher, mas nunca quiseram saber como é ser homem”...
Nesse momento eu me identifiquei com a Chauí, naquele momento do Stand Up da Classe Média Paulistana, quando ela diz “tudo o que tinha de ter de ruim no meu ser... TUDO! Tudo aquilo que minha mãe tentou consertar e não conseguiu... Subiu e numa grande onda incontrolável...” Mas eu sou uma boa virginiana, observadora. E ele, o kantiano banal, que não era capaz de enxergar que o discurso em tom irônico expressava exatamente o que Kant pensava das mulheres. E ele estava reproduzindo, 200 anos após a morte de Kant. Tá, já vi um professor usar o discurso kantiano para justificar e manter “o estado de degradação ao qual a mulher é reduzida”... Aliás, isso é parte do título do capítulo IV do livro “Reivindicação dos Direitos das Mulheres”, de Mary Wollstonecraft, publicado em 1792. O nome do capítulo é “Observações sobre o estado de degradação ao qual a mulher é reduzida por várias causas”. Obra e capítulo com o qual estou trabalhando em minha monografia.
Mas voltemos à neurose, que na verdade, não passa de relações que se faz entre os acontecimentos presentes e o acúmulo de informações que a individua aqui, “neurótica da vez”, fez.
Por que esse pensamento de que as mulheres conhecem mais os homens?
Rousseau, com seu Emílio, afirma que a mulher foi feita para agradar o homem. E Kant, em sua Antropologia, naturaliza uma inclinação da mulher para agradar. E como se agrada alguém? Conhecendo esse alguém.
Espera-se – no caso do cara à mesa – que as mulheres conheçam os homens mais que eles mesmos, pois historicamente, nos educaram e, de alguma forma é possível afirmar que, ainda hoje, esperam que a gente cumpra essa “função natural” de agradar os homens. Então, por ser uma inclinação natural (!!!) têm essa expectativa a nosso respeito. E por que não afirmar que muitas de nós, mulheres, também não temos as mesmas expectativas a nosso próprio respeito? Não é o meu caso, mas penso que ainda há muitas mulheres com essas expectativas. O que é bem ruim.
E a questão do “querer ser o outro” traz outro problema: a desigualdade. Desigualdade no sentido ruim mesmo, de não reconhecer o outro. Por isso que há essa lenda sobre um tal mistério feminino... Que é impossível entender as mulheres... Realmente, se você tem problemas cognitivos, será impossível entender, não apenas as mulheres mas qualquer outra coisa nessa vida.
Sempre que escuto essa coisa de “não dá pra entender as mulheres” só me vem duas coisas a cabeça: 1. “Burro!” Pobre do asno pela comparação; 2. Será que quando nós, mulheres, falamos, os homens escutam como se falássemos igual a professora do Charlie Brown? (o que ainda me faz pensar que a debilidade seria dos homens que fazem essas colocações).
Wollstonecraft coloca em seu livro Sobre a Educação das Filhas, que, se as mulheres são intelectualmente inferiores aos homens é porque a educação nos foi negada. E que, além disso, nos foi negada desde cedo a participação na esfera pública. As mulheres que se destacaram tiveram que assumir posturas ditas masculinas, para se empoderarem e conseguirem espaços. Em geral, esses espaços conquistados, não o eram para as mulheres, mas para uma determinada mulher que, ainda assim, era vítima de declarações como as que Kant fazia de que “deveria usar barba para expressar a altivez que seu espírito almeja”.
Falar como um homem, estudar como um homem, ter o respeito de um homem... E aí me atrevo a trazer Madonna: “Garotas podem vestir jeans e ter cabelos curtos, porque está tudo bem se parecer com um garoto. Mas para um garoto, se sentir como uma garota é degradante, porque se pensa que ser garota é degradante.” Nenhum filósofo teve que “se portar” como mulher pra conquistar espaços. Muitas filósofas tiveram que “se portar” como homens para conquistarem espaços. E ainda assim, eram alvo de comentários como o de Kant.
Beauvoir nos mostrou bem que não existe mistério nessa tal existência feminina. Apenas nas lendas que os homens criaram para aquilo que não reconhecem como semelhante. “Torna-se mulher!”
Todo esse querer ser mulher para descobrir o caminho para as Índias não passa de um fetiche. Está muito longe de ser um processo de conhecimento. Mesmo que eu possa vir, a algum momento, considerar que determinados fetiches podem gerar algum tipo de conhecimento, mas também não vou me debruçar sobre isso aqui.
Existe uma História que nos diz o que devemos ser. Que diz aos homens também o que eles devem ser. Determinismo.
Determinismo que precisa ser destruído para que se possa ser o que quiser e quando quiser – e se quiser.
Por que era de se esperar que Hannah Arendt e não Schopenhauer reconhecesse o Kant dos anos 90 como gagá (não que o fosse, necessariamente)? Simplesmente por ser mulher e carregar todas essas expectativas historicamente construídas? Por carregar esses ‘mistérios’ femininos que nos tornam bruxas e feiticeiras?
Hora de parar de usar gênero pra justificar coisas que não se justificam mais. Não há mais argumentos para continuar a perpetuar estados de degradação para reduzir nem mulheres e nem homens e nem além. 
Mas a Feminista Neurótica Histórica aqui, considera pauta vencida com poesia de Caetano:

“Não me venha falar na malícia
De toda mulher
Cada um sabe a dor e a delícia
De ser o que é


Não me olhe
Como se a polícia andasse atrás de mim
Cale a boca e não cale na boca
Notícia ruim


Você sabe explicar,
Você sabe entender tudo bem
Você está, você é
Você faz, você quer, você tem


Você diz a verdade
A verdade é o seu dom de iludir
Como pode querer
Que a mulher vá viver sem mentir”