segunda-feira, 9 de julho de 2012

Feminismo pra quê e pra quem?



A mais rasa das mentes que opta por discutir ou questionar as posturas e ações Feministas de hoje, têm como conhecimento apenas a história do movimento do fim do século XIX pra cá. Isso quando possuem ao menos esse pequeno período da História do Feminismo como informação. Quem não tem a mínima informação ou interesse no movimento, lança sobre às ativistas toda uma gama de preconceitos machistas, construídos, estruturados e difundidos ao longo de toda a história da humanidade – fundamentada num eixo patriarcal e centralizador de poder.
Esse período amplamente difundido como a História no movimento feminista, nada mais é que apenas um período recente desta história. É o período em que o movimento ganha estrutura política e força enquanto movimento social, graças à popularização do anarquismo e do socialismo, e ao aparecimento das teorias marxistas, que ao se mobilizarem em prol do proletariado, buscando desestruturar o sistema de exploração capitalista – que tornara-se mais forte após a Revolução Industrial – abarcam também a questão das mulheres na sociedade.
As mulheres, até a Revolução Industrial, eram excluídas do mercado de trabalho, sendo elas destinadas apenas ao âmbito privado, pois assim, sem contato com a vida social, também estariam sem contato algum com o poder. Lembrando que poucas eram as mulheres privilegiadas, que podiam estudar e freqüentar as altas esferas da sociedade. E em sua maioria, isto era possível serem mulheres com poderes aquisitivos. O que prova que o preconceito de gênero só se agrava com o preconceito social: uma mulher com poder aquisitivo, poderia viver entre os homens, ter acesso à educação, viver sem casar-se...


Karina Buhr em seu blog-manifesto sexoagil.com: "Mulherzinha é o caralho!"

Enfim, a realidade é que o Feminismo antecede muito tudo isso que é apresentado como cronologia do Movimento. Mais que isso: o Feminismo abrange muito mais do que os direitos das mulheres.
Ao longo de toda a história da humanidade, os homens sempre se preocuparam e se ocuparam em encontrar um lugar, uma função social para as mulheres, condicionando-as ao cárcere privado em cavernas, casas, à obrigação da reprodução, à subserviência. Não só no âmbito prático, pois os filósofos também se ocuparam em encontrar esse lugar no mundo para as mulheres; em investigar uma tal ‘natureza feminina’ que, de acordo com eles, era dotada de ‘inferioridade intelectual’, e por isso, não poderia participar da democracia, da vida livre.
O grande e cultuado Aristóteles, em seu famoso livro “Política”, institui esse lugar para a mulher, fora na vida. A mulher é colocada junto aos escravos, estrangeiros, velhos, crianças e animais, num universo de posse. Estes deveriam ter um senhor, serem possuídos. Seres ‘incapazes’ de governarem a si mesmos e, por isso, deveriam ser governados.
Este livro de Aristóteles foi o que estruturou a Pólis grega e fundamentou o ideal de Democracia que se construiu nas sociedades ocidentais. Ainda vemos hoje os reflexos deste destino dado pelos homens livres aos excluídos da vida livre. Mais que isso, outros pensadores extremamente importantes pra história do conhecimento também contribuíram para esta construção de que a mulher é apenas mais uma das posses dos homens livres. Não só as mulheres, mas qualquer um que não pudesse pagar por para ser livre. Na Roma antiga, uma mulher que parisse três filhos homens ganhava a liberdade, por exemplo. E isso ficou ainda mais descarado com Kant, que em suas obras afirma que a mulher deve ter um dono, e que a função dela é ser enfeite e agradar ao seu possuidor. Daí o termo ‘mulher bibelô’.

Olympe de Gouges (1748-1793)

A Revolução Francesa prossegue com o ideal machista, e Rousseau, além de autor de uma obra que ‘ensina’ como educar um homem e como educar uma mulher – O Emílio, Ou Da Educação -, redige também a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), que cumpria exatamente o que prometia: declarar os direitos dos homens (gênero) e dos que podiam ser cidadãos. A prova de que o documento cumpria o que prometia é a gama de documentos surgidos após a publicação deste, reivindicando os direitos das mulheres e das cidadãs, assim como de camponeses e estrangeiros. Exemplo disso, a jornalista e escritora feminista Olympe de Gouges, que dois anos depois da apresentação deste documento sexista, escreve a Declaração dos Direitos das Mulheres e da Cidadã (1791), e foi guilhotinada por desafiar a autoridade masculina com seus escritos.

Mary Wollstonecraft (1759-1797)

Antes de Olympe de Gouges, a professora e escritora feminista inglesa Mary Wollstonecraft escreveu em 1790, A Reivindicação dos Direitos da Mulher, também em retaliação ao documento de Rousseau. E antes mesmo da Revolução Francesa, Poullain de la Barre, escritor e filósofo feminista, questiona a injustiça histórica em relação às mulheres, e faz uso dos princípios cartesianos para denunciar isso e reivindicar igualdade de direitos para as mulheres.

“Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, pois eles são, a mesmo tempo, juiz e parte.” (Poullain de la Barre)

Sóror Juana Ines de la Cruz (1651-1695)

E, curiosamente, no século XVII, uma mexicana, revoltada com o fato de que não poderia entrar em uma universidade e que teria que se casar, opta por se tornar monja, pois desta forma, poderia se dedicar aos estudos, pesquisas e aos seus escritos. Foi desta forma que Juana Ines de la Cruz se tornou um ícone da Literatura Barroca Mexicana. Chamada por muitos de seus contemporâneos por Décima Musa, Sóror Juana produziu aquilo que muitos acreditam ser a produção literária mais rica do México, “permanece insuperável pela universalidade de seu pensamento, o brilho de sua sagacidade, a correção de sua prosa e a magnificência de sua poesia, combinado com o domínio insuperável do conhecimento alegórico e profundo de muitos assuntos.”
Sóror Juana possuía a mais rica biblioteca das Américas em seu tempo, graças aos inúmeros livros que ganhara de presente de inúmeros amigos intelectuais europeus e mexicanos. Mas infelizmente, a inquisição lançou os olhos sobre a importância que Sóror Juana tinha, por conta de todo conhecimento adquirido com anos de estudos, e censuraram e recolheram muitos de seus livros e instrumentos de pesquisa científica, condenando sua busca e transmissão de conhecimento.

FEMEN

Em todos esses casos que antecedem as “ondas” do movimento Feminista que surgem a partir do fim do século XIX, Sóror Juana Ines de la Cruz, Poullain de la Barre, Mary  Wollstonecraft e Olympe de Gouges pautavam a questão da desigualdade que atingia não apenas as mulheres. A reivindicação por cidadania clamavam pelo direito a cultura e educação para todos, e na mesma medida em que estas eram ofertadas aos poderosos. 
Outras pensadores mais contemporâneas reforçam essa solicitação por igualdade social e contra as múltiplas explorações, como Rosa Luxemburgo, Simone Weil e Simone de Beauvoir. Estas produziram material essencial hoje aos movimentos de mulheres.
Wollstonecraft apresentou o Feminismo como uma luta pelos direitos da humanidade, pois a mulher sempre esteve ao lado de outros grupos excluídos. O Feminismo é, inclusive, uma luta pelos direitos de quem não quer ter direitos. Se uma mulher no Oriente Médio quiser seguir viver sob as leis religiosas que governa seu país, que viva por ser uma escolha dela, e não porque aquelas leis lhe são impostas por uma tradição milenar. Que ela tenha direito de escolher se que viver sob os direitos humanos ou sob os direitos dos homens.

Bra-Burning (1968)
Marcha das Vadias - Porto Alegre (2012)

Após a queima de sutiãs de 1968, nada mais natural que a nova onda feminista seja marcada pelos seios à mostra. Penso que podemos declarar sim, que a nova onda foi iniciada e ela se dá de duas formas: 1. A constante construção de voz; e 2. Atos de inversão do uso do corpo.
A dominação machista sempre teve sua expressão máxima por meio da violência física contra mulheres, crianças, LGBTs e outros grupos. O corpo feminino, ainda hoje visto como objeto de desejo ou como mercadoria na gôndola do supermercado, agora é usado como arma. Nas Marchas das Vadias, que ocorrem em todo o mundo, e nos protestos do FEMEN, na Ucrânia e se espalhando pelo mundo também, vemos esse uso bélico do corpo feminino.

“Meus seios são duas bombas!”
Essa afirmação é de uma das ativistas do FEMEN e estudante de Economia, Aleksandra (Sasha) Shevchenko.

Aleksandra Shevchenko (Sasha) - FEMEN Ucrânia
 

O corpo que é visto com desejo de posse agora traz em si mensagens chamando atenção pra violência do Governo, da Igreja e do Machismo contra mulheres e contra toda a sociedade explorada. O mais tarado dos homens, ao centrar seus olhos nos seios expostos das Feministas de hoje, não poderão ignorar as mensagens escritas neles e em todo o corpo. Não poderão ignorar os atos e gritos contra a exploração. Se isso lhes conscientiza ou se potencializa sua ira, só saberemos com o tempo. Mas uma coisa é fato: como bombas, os seios feministas estão realmente chamando atenção para as causas levantadas. Mesmo que por meio de discussões sobre a validade de tirar a roupa ou não para defender uma causa. E nisso, já se discute a causa.
Nas Marchas das Vadias que tomaram as ruas do Brasil em 2012, muitas mulheres tiraram a camisa durante a marcha. Muitas dos casos, a marcha fora escoltada pela polícia. Mas por quê? Porque seios são realmente perigosos e a polícia precisa contê-los pra que a mulher não se sinta dona do próprio corpo, e passe a decidir sobre este. E isso desde a época de Napoleão, as reuniões de mulheres nas ruas são controladas pra que elas não se rebelem.

Repressão a ato machista durante Marcha das Vadias, em Brasília.

É o que acontecem com as gurias do FEMEN. Elas se rebelam contra as opressões, e assim como as Vadias em marcha, pautam em seu corpo e em seus cartazes, assuntos dos mais diversos: aborto, turismo sexual, corrupção, religião, pedofilia, economia, violência, meio ambiente... Todo tipo de controle e exploração machista, por meio do poder.
A nudez enquanto ferramenta sexual é banal. Mas enquanto forma de protesto, é criminalizada, pois ela denuncia, ela informa e chama pra luta. Como a Libeté, de Delacroix, portando a bandeira francesa com os seios à mostra e guiando o à revolução.

Le Liberté guidant le peuple (Delacroix)

“Seios são maravilhosos e símbolo de maternidade. As pessoas não deveriam se assustar ou se ofender com protestos de topless. É a mesma coisa que uma mulher que expõe os seios pra amamentar. Não é assustador. A diferença é que num momento os seios alimentam e em outro ele é uma arma política.” Diz Oksana Shachko, estudante de artes e ativista do FEMEN.
E o FEMEN, ao contrário do que muitos pensam, não é composto apenas por mulheres que se enquadram num padrão de beleza que também é construção patriarcal. Há mulheres de todos os tipos, como Alexandra Nemchivo, uma das principais ativistas ucranianas do grupo, e que faz questão de usar seu corpo como arma contra a exploração, dando prosseguimento e vida a mais uma das bandeiras do movimento feminista de todos os tempos: “Todas as mulheres são bonitas!”, “Mulher bonita é a que luta!”

Alexandra Nemchivo - FEMEN Ucrânia

Digamos que, a tal terceira onda do Feminismo não findou ainda enquanto uma quarta onda se impõe. Um movimento cada vez mais politizado e inclusivo, especialmente em relação às mulheres negras, lésbicas e trans. Mas também, um movimento que não teme o enfrentamento. Mesmo que sejam poucas, já é um número crescente. Podemos perceber isso com o número de Marchas das Vadias que aconteceram apenas no Brasil, em relação ao ano de 2011, assim como a quantidade de mulheres que tiraram a camisa nestas marchas em 2012 – um número infinitamente maior que em 2011. Também podemos observar isso com o crescimento ou expansão do FEMEN, que em 2008, contava apenas com a célula original, na Ucrânia. E hoje, quatro anos depois, foi criado o FEMEN Internacional, que conta com representações e ativistas em 27 países, inclusive o Brasil.

FEMEN em Davos
Oksana Shackho (FEMEN) durante a Euro Copa

“Usar a nudez como arma em protestos políticos é um ato educativo”, conclui Oksana, que em 19 de dezembro de 2011 foi sequestrada com mais duas ativistas da FEMEN, pela KGB bielorrussa, após um protesto no país. As ativistas ficaram em poder dos policiais, sofrendo abusos físicos e psicológicos por mais de 24hs, até serem abandonadas nuas numa estrada afastada da capital. 

Oksana mostra as marcas da agressão policial.

Durante protestos em Kiev, capital da Ucrânia, contra a exploração sexual promovida pelo evento, Oksana foi presa e ficou detida por cinco dias, e hoje responde a dois processos.
E quem há de negar isso em tempos de uso do corpo pela exploração capitalista? 
Nada mais coerente que, após a queima de sutiãs, o novo Feminismo seja feito de peito aberto! Mesmo que muitas ativistas não recebam bem ou não aprovem, ele já é um fato e tem chamado a atenção, visibilidade, e conquistando espaços por meio de pequenas discussões - algumas nem tão pequenas - e quebrado o silêncio ao enfrentar o moralismo, sem vergonha ou medo de mostrar o corpo colorido com mensagens de impacto, como uma verdadeira arma.
E para aqueles que temem o poder de uma mulher livre e de uma sociedade livre, realmente, os seios são bombas!